O Psicanalista lê o jornal

A – “Toda a tripulação está morta” –”Dor dá lugar à revolta contra autoridades” – OESP – 22/8/00 – A12 e A13.

Sendo a finalidade precípua de um submarino o desempenho bélico em missões de espionagem e suporte de poderosos armamentos, a tragédia russa nos faz pensar imediatamene na insânia da guerra, flagelo que a humanidade conhece desde seus primórdios e do qual não sabe ainda hoje como se livrar. Mas esse é um tema que, por demais vasto, não abordaremos no momento.

Ressaltaremos dois aspectos.

I) Em primeiro lugar a relutância do governo russo em solicitar ajuda. É compreensível, pois a pediria exatamente a seus inimigos em caso de guerra, a OTAN, expondo fraquezas e impossibilidades. A relutância do governo, que teria tido consequências fatais, lembra muito a atitude orgulhosa de determinados pacientes narcísicos, para quem a onipotência e a arrogância psicótica impedem o pedido e a aceitação de uma ajuda, vividas como ferida narcísica e humilhação insuportáveis.

II) Regidos por afetos e distantes da razão, nos emocionamos com a morte de nosso semelhante quando é possível nos identificar com eles e suas contingências. Por alguns aterrorizados instantes, todos nós nos imaginamos dentro daquele submarino, na escuridão e no frio, rumo a uma morte desesperada. Muitos pacientes trouxeram a imagem do submarino em suas sessões. Identificaram-se com os tripulantes, projetando neles a claustrofobia, o medo, a solidão, a angústia da morte.

Em alguns casos foi possível detectar as ansiedades mais primitivas e psicóticas, ligadas à fusão com o corpo da mãe – o submarino representaria o próprio paciente “in útero”. Estes pacientes revelavam o desejo inconsciente de estar no interior da mãe, com tudo que isso implica de pulsão de morte, pois se a regressão fusional com a mãe os deixa protegidos e a salvo do perigoso mundo externo, essa mesma regressão o aprisiona mortalmente, impossibilitando-o de sair, impedindo sua autonomia e a organização de sua individualidade.

Esses pacientes me fizeram lembrar o polêmico e original livro de Sandor Ferenczi, THALASSA(Martins Fontes, 1990). Ali ele estabelece a importância do desejo de retorno ao interior da mãe, sua vinculação com os estágios mais regressivos do psiquismo e sua permanência em fantasias, no sonhar e no coito.

Diz ele: “Certos detalhes do simbolismo dos sonhos e das neuroses sugerem a existência de uma analogia simbólica profunda entre o corpo materno e o oceano, por um lado, a mãe- terra “nutriente” por outro. É possível que esse simbolismo exprima, em primeiro lugar, o fato de que o homem, enquanto indivíduo, é antes de seu nascimento um endoparasito aquático e após o nascimento, durante um bom tempo, um ectoparasito aéreo da mãe; mas também que, na evolução das espécies, a terra e o oceano desempenhavam realmente o papel de precursores da maternidade e ocupavam eles próprios o lugar de organizações protetoras, involucrando e alimentando esses ancestrais animais. Nesse sentido, o simbolismo marinho da mãe possui um caráter mais arcaico, mais primitivo, ao passo que o simbolismo da terra reproduz aquele período mais tardio (…) O material psicanalítico cotidiano também fornece exemplos convincentes do simbolismo materno da terra e da água (…) Já interpretamos o fato de ser salvo da água ou de flutuar na água como uma representação do nascimento ou do coito – interpretação aliás corrente em psicanálise (…) Cair na água é, voltamos a repetir, o símbolo mais arcaico, o do retorno ao útero materno; enquanto que ser salvo ou resgatado das águas enfatiza o episódio do nascimento, ou seja, a saída para a terra. (p. 61-62) (…) De acordo com nossa hipótese, o coito é essencialmente a descarga de uma tensão penosa e, ao mesmo tempo, a satisfação da pulsão de retorno ao corpo materno e ao oceano, ancestral de todas as mães” (p.74).

 

B – “MP age segundo ‘manual nazista’, diz advogado-geral – OESP – 16/8/00 – A4-5.

 

Talvez o governo FHC tenha chegado em seu nível mais baixo neste lamentával episódio em que tenta desacreditar e desautorizar aqueles que são o único resquício de moralidade e ética públicas: os jóvens promotores. Um preposto do poder diz que os mesmos usam um “manual nazista”, expondo injustamente à execração pública homens probos.

Numa total inversão dos fatos, onde jogam papel determinante a projeção e a denegação, isso é exatamente o que o poder está fazendo com os jóvens promotores.

 

C – “Clinton chega hoje à Colômbia sob protesto” – FSP – 30/8/00 – A11
“Clinton entra na ‘luta de morte’ contra o tráfico – OESP – 30/8/00 – A15

 

Claro que a questão do narcotráfico é extremamente grave e complexa, desde seus elementos econômicos até suas implicações morais e éticas. O narcotráfico com seus bilhões exerce um poder perverso, corrompendo e degradando as mais variadas instituições e organizações sociais. Vimos agora como Clinton se dispõe a ajudar financeiramente a Colômbia, no intuito de coibir o poder dos barões da droga. Levando em conta, como diz o jornal, que “a Colômbia fornece cerca de 90% da cocaína consumida pelos 12 milhões de americanos que usam drogas regularmente e são a principal fonte dos bilhões de dólares movimentados pelos traficantes”, não deveria o esforço de Clinton centrar-se no próprio território americano, cortando o mercado consumidor? Não seria mais lógica tal medida? Estaria mais uma vez dissociando o problema, projetando-o fora, negando uma importante faceta do mesmo?

 

D – Freud pas mort! Sexe, éducation, travail… Depuis cent ans, la psychanalyse change notre vie – L’Express International – 3-9 aout 2000

 

Em matéria de capa, a popular revista francesa presta uma verdadeira homenagem a Freud e à psicanálise. Reconhece as dificuldades pelas quais passa, mas ressalta os enormes benefícios por ela trazidos, além de exibir a extraordinária influência do pensamento psicanalítico em toda a cultura ocidental deste século. Oxalá tal matéria mostre uma mudança na tendência predominante no meio “psi” hoje em dia, caracterizada pela excessiva ênfase na importância das neurociências, em detrimento da psicanálise, tida como algo “superado”. Na verdade, já se detecta nos Estados Unidos uma reação neste sentido, já se esboça uma crítica a essa visão que empobrece a prática psiquiátrica, ao negar ao paciente seu mundo simbólico e representacional.

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