O psicanalista lê o jornal

Altos interesses comerciais e a psiquiatria Na linguagem lacaniana, o real é inacessível, e a realidade é o produto resultante da rede simbólica e imaginária jogada sobre o real.

* O jornal Valor, do dia 8/5/00, em artigo intitulado “A Síndrome da nova economia”, fala do burnout , “síndrome responsável por uma combinação explosiva de falta de motivação para o trabalho, sensação de impotência, sentimento de derrota, doenças cardíacas e gastrointestinais, com uma não menos perigosa – para indivíduos e empresas – queda na produtividade”.

* A Gazeta Mercantil (6/7 de maio do corrente ano) em artigo intitulado “Ansiedade em Alta”, aborda tema semelhante ao falar da tensão e depressão em executivos. Traz alguns dados interessantes: “Nos Estados Unidos, o total de receitas de drogas psicoativas aumentou de 131 milhões em 1998 para 233 milhões no ano passado. O mercado americano de antidepressivos movimenta US $ 6,5 bilhões por ano. Existe atualmente um mercado de US $ 7 bilhões para os antidepressivos no mundo todo, com expansão prevista para 50% em cinco anos. Só no Brasil há mais de 40 antidepressivos à venda. Nos últimos dez anos, dobrou o número de consumidores desse tipo de medicamento no país.[…] Pessoas de diferentes culturas e tradições produzem diferentes somatizações. A China, por exemplo, sofre 200 vezes menos de depressão profunda que os EUA, país que gasta US $ 44 bilhões – o mesmo montante gasto com doenças cardíacas – com a depressão, segundo pesquisa do Massachussetts Institute of Technology (MIT)”.

* O suplemento MAIS da Folha de São Paulo de 28/5/00 traz o artigo “Sociofobia – o comércio da timidez”, traduzido da revista americana “The New Republic”.

Este artigo levanta várias questões importantes. A maior delas é sobre a problemática questão do estabelecimento de novos quadros nosográficos e sua relação com a indústria farmacêutica. O caso da “sociofobia” é bem esclarecedor. Até 1985, um quadro nosográfico inexistente, atualmente diagnostica a espantosa cifra de 35 milhões de norte-americanos.

O que teria desencadeado tão importante mudança foi um artigo publicado em julho de 1985, “Sociofobia: Análise de um distúrbio da ansiedade negligenciado”, de Michael R. Liebowitz, diretor de clínica e distúrbios da ansiedade do Instituto Psiquiátrico do Estado de Nova Iorque. Neste artigo o autor critica critérios nosográficos anteriores que colocavam a “sociofobia” nos quadros de “timidez geral mais grave, considerada imune a intervenções farmacológicas”.

Dr. Leibowitz, que também dá “consultoria ao setor farmacêutico”, disse em entrevista ao “The New York Times” que “quando a incidência da sociofobia chegou a 8% ou 9% (em boa parte graças à definição ampliada que ele defendeu) as empresas de medicamentos demostraram um agudo interesse pela sina dos sociofóbicos”.

Atualmente, há campanhas publicitárias – cujo mote é “imagine ser alérgico a gente” – para esclarecimento ao grande público da existência avassaladora desta doença, juntamente com a boa nova de que ela é tratável medicamentosamente. Essas campanhas são financiadas pela SmithKline, laboratório que produz o PAXIL, que – por coincidência – é justamente a medicação indicada para a nova doença…

David Healy, diretor do departamento de medicina psicológica da Universidade do País de Gales, afirma que ” as empresas farmacêuticas evidentemente fabricam remédios, mas menos evidentemente fabricam opiniões sobre as doenças. Não o fazem forjando novas idéias nos laboratórios farmacêuticos, mas reforçam certas opiniões”(grifos meus).

Em um livro seu, Healy “nota um padrão emergente no campo da medicina psiquiátrica: sabe-se da existência de um distúrbio mental relativamente raro, descobre-se o efeito de uma droga psicotrópica sobre o problema e em seguida o índice de diagnósticos aumenta exponencialmente. Ele verifica esse aumento na história da depressão, do distúrbio do pânico, do distúrbio obsessivo-compulsivo e da sociofobia”.

O artigo faz ainda graves considerações: “Cada vez mais psiquiatras estão saindo de cena enquanto os vendedores de medicamentos ‘educam’ práticos e internos para identificar e tratar (isto é, medicar) os distúrbios mentais. Nada disso pretende sugerir que algumas pessoas não estejam sofrendo. Existem os que têm um medo debilitante do intercâmbio social.[…] Mas que o sistema de saúde mental e as empresas farmacêuticas afirmem que 35 milhões de americanos vagam num mar de timidez patológica ultrapassa o limite do plausível. É mais provável que essa ‘epidemia’ seja uma nova etapa da cruzada cultural para ‘medicalizar’ qualquer característica – física ou de comportamento – que não se enquadre nos falsos ideais criados pela cultura pop, pela publicidade e pelas normas morais e políticas em mutação. Sem falar nos interesses econômicos desencadeados por tal ‘epidemia’.

Esse assunto não é novidade e preocupa a todos que temos consciência dos graves problemas nele envolvidos, por isso mesmo é ele periodicamente abordado em nossa Lista de Psiquiatria. É imprescindível que nós tenhamos consciência da importância de nossa prática e dos interesses econômicos que ela involuntariamente provoca. É necessário reconhecer os avanços da neuroquímica cerebral e sua aplicação na indústria farmacêutica. É importante investir nos esforços para o estabelecimento de critérios mais objetivos e claros no diagnóstico, coisa que possibilita a obtenção de dados estatísticos confiáveis das doenças mentais, mas é importante discriminar os abusos que podem ser cometidos e as eventuais imposturas que se escondem atrás das fachadas tidas como “científicas”.

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