O Google, o terapeuta e o paciente

O Google, o terapeuta e o paciente

Sérgio Telles

Recentemente o jornal londrino The Guardian publicou um artigo sobre o uso do Google por parte de pacientes em busca de informação sobre seus psicoterapeutas e vice-versa – terapeutas que pesquisam nos buscadores da internet informações disponíveis na rede sobre seus pacientes. Que um jornal como o The Guardian se ocupe com tal assunto bem dá medida da relevância e do interesse do público sobre a questão.

https://www.theguardian.com/society/2017/feb/04/search-me-should-you-google-your-therapist

Embora nós psicanalistas tenhamos uma conduta mais reservada e procuramos preservar nossa intimidade frente ao analisando por acreditar que a conduta oposta poderia provocar interferências indesejáveis ao tratamento, o artigo do The Guardian nos interessa, pois não podemos ignorar a importância das novas mídias e sua presença maciça na vida de todos. As situações ali mostradas não são estranhas às de nosso consultório. O uso do Google na relação paciente-terapeuta é algo estabelecido, não há como evitá-lo e de nada adiantaria tentar coibi-lo. O que nos resta é reconhecer o problema, tentar entendê-lo e aprender a lidar com ele.
Nós analistas continuamos a pensar que o acesso do paciente a informações sobre a vida pessoal e as opiniões do analista interfere na cura, podendo reforçar tanto a transferência positiva (idealização, cumplicidade e fantasia de comunhão e proximidade em caso de coincidirem as opiniões do analista com as do paciente), como a negativa (as opiniões divergentes do analista podem ser vistas como julgamentos e críticas, não aceitação, rejeição, favorecendo o aumento da persecutoriedade por parte do analisando). Tudo isso já era conhecido, a novidade introduzida pela internet é a facilidade do acesso às informações, ainda mais que são oferecidas pelos próprios analistas, na medida em que as publicam em sites abertos ao público.
Se são esses os efeitos sobre o analisando das informações sobre o analista obtidas via internet, o que ocorreria no outro polo da questão – o fato de o terapeuta pesquisar informações sobre o paciente na internet ?
Aqui novamente se impõe a diferença entre a técnica psicanalítica e a das demais linhas terapêuticas.
Em princípio, o psicanalista não deveria ter informações a respeito do paciente a não ser aquelas dadas pelo próprio no correr das sessões analíticas. Mas isso não ocorre exatamente assim nem mesmo nos casos mais leves, como os de neurose. É habitual que aquele que faz o encaminhamento do paciente, especialmente se for um colega, dê ao analista sumárias mas decisivas informações sobre o mesmo, de modo que ao receber o paciente o analista tem uma ideia geral do que vai encontrar. Essa ideia inicial será confirmada ou corrigida nos contatos que o analista terá com o paciente, quando formará sua própria avaliação do mesmo. Nos casos mais graves, antes e/ou no correr da própria analise, o analista pode necessitar de informações objetivas que o ajudem na compreensão do paciente e na forma de lidar com diferentes situações, como o uso da medicação, risco de suicídio e homicídio, encaminhamento para internações, ocasiões em que recorre a colegas que cuidam da parte medicamentosa do tratamento e aos familiares responsáveis pelo paciente. Algo semelhante ocorre na análise de crianças e adolescentes, quando quase sempre é necessário o contato com a família.
Vê-se que o analista tem acesso a informações sobre o paciente além daquelas que o próprio paciente lhe forneceu. Assim, o uso de informações disponíveis na internet não deveria ser entendido sob este ângulo, como um recurso a mais a ser utilizado pelo analista?
É claro que o analista deverá ter presente, sempre, sua contratransferência, tanto nos períodos fáceis como nos mais tumultuados da análise. Ele deve consultá-la (sua contratransferência) especialmente nos momentos em que sente necessidade de recorrer à ajuda externa no andamento da análise. Na verdade, esse será sempre um fator central, essencial, no andamento do tratamento. Se o analista for capaz, como se espera, de discriminar suas fantasias e desejos inconscientes dos do paciente, terá condições de administrar bem o andamento da cura, com ou sem recursos externos. Assim, o analista deve perguntar-se se seu desejo de consultar o Google sobre determinado paciente se deve a uma curiosidade legitima, pela efetiva necessidade de esclarecer algo importante naquele momento ou se decorre de fatores ligados à sua contratransferência a serem melhor examinados por ele mesmo.
No artigo do The Guardian, uma terapeuta diz ter procurado dados sobre um paciente que afirmava ocupar uma alta posição numa importante instituição. Dado os traços de megalomania e ideias de grandeza, a terapeuta não sabia se tais informes correspondiam à realidade ou se eram uma formação delirante. Ao consultar o Google, confirmou a veracidade do que lhe dizia o paciente. Embora a terapeuta não prossiga em suas declarações, nós leitores podemos pensar que tal informação ter-lhe-ia sido útil não só para delimitar e entender melhor a patologia do paciente, como também para jogar luz sobre sua contratransferência. Afinal, a terapeuta não acreditava nas informações do paciente por causa da megalomania e ideias de grandeza dele ou por causa de sua (dela) inveja?
Tanto o paciente como o terapeuta, ao terem acesso a informações um sobre o outro via internet, deveriam falar sobre isso nas sessões, o que enriqueceria o material a ser trabalhado.
Um aspecto de importância decisiva na questão é que as informações encontradas na internet foram divulgadas por livre e espontânea vontade pelos interessados, ou seja, terapeutas e pacientes. Isso tem decisiva implicação ética, pois, nessa condição, qualquer um pode acessá-las de forma legitima, sem estar com isso cometendo invasão de privacidade, quebra de sigilo, ou indiscrição indevida. Esse tipo de acesso a informações é o oposto daquele conseguido – por exemplo – através da contratação de detetives particulares, pois então as informações sigilosas derivariam de uma condenável invasão de privacidade, eticamente insustentável.
Essas são algumas ideias iniciais que me ocorreram após a leitura do artigo do The Guardian. As questões ali levantadas são novas e complexas, e necessitam de mais estudo para que se possa estabelecer parâmetros adequados.
Já tinha escrito esse texto quando resolvi pesquisar na rede e encontrei muitos artigos sobre o assunto em revistas leigas e médicas. O que me pareceu mais completo foi publicado em 2015 pelo British Journal of Psychiatry.

(https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4706208/).

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