Nudez – digressões em torno do filme “Shame”

O comportamento compulsivo incide muitas vezes sobre atividades reprimidas, censuradas e passíveis de punição legal, como o jogo, o sexo, o uso de drogas. Por esse motivo, os que incorrem em tais práticas tão proibidas podem ser vistos como detentores de invejáveis ousadia e liberdade pela maioria cumpridora de deveres e submetida às sanções socialmente estabelecidas. E está aí o paradoxo da compulsão, pois aquelas pessoas são tudo, menos livres e ousadas. Estão acorrentadas à repetição incessante do mesmo desempenho que jamais lhe proporciona a tão buscada satisfação.

Não se pode esquecer que a droga, o sexo e o jogo são negócios geradores de uma forte economia paralela negada pelo mercado oficial. Se isso ocorre é por atenderem a uma realidade humana cuja complexidade não é reconhecida adequadamente, motivo do fracasso das medidas tomadas em relação a eles, como mostra o suposto combate internacional ao tráfico de drogas.

Não se trata de substituir a hipocrisia moralista por um diagnóstico médico ou psicológico, e sim de não negar o sofrimento dos praticantes de tais atividades e as consequências danosas que elas têm sobre suas vidas, como bem mostra o filme Shame, de Steve McQueen, com Michael Fassbender no papel de um compulsivo que vive em Nova York. Como era de se esperar, para ele o sexo nunca é a via para o prazer e sim o aguilhão que o conduz à procura de um gozo mortífero. As razões do desespero que inutilmente procura esconder atrás de sucessivos orgasmos são evocadas pela irmã frágil e suicida, que insinua um passado familiar traumático.

O filme teve nos Estados Unidos um inesperado efeito colateral decorrente dos momentos do nu frontal de Fassbender, gerador de muitos gracejos. George Clooney deu o tom da gozação ao mencionar, num programa de televisão de grande audiência, que Fassbender poderia jogar golfe sem taco, bastando mover o corpo de um lado para outro. Outros colunistas disseram que Fassbender não fora indicado para o Oscar por “inveja do pênis” por parte dos membros da academia…

Aproveitando a deixa, James Wolcott, colunista da revista Vanity Fair escreveu um divertido artigo, The Hung and the Restless, uma espécie de história do pênis no cinema americano. Nele lista os filmes em que o tabu do nu frontal masculino foi derrubado, entendendo a diferença no trato da nudez de cada um dos sexos como decorrente do fato de vivermos numa sociedade machista, na qual o corpo da mulher é objeto de desejo fetichisado e a nudez masculina suscita pânico homossexual, leitmotiv de infindáveis piadas entre os homens.

A meu ver, a crescente tolerância com a nudez nos filmes de Hollywood não pode ser dissociada da liberação da pornografia proporcionada pela internet. O número impressionante de acessos aos sites pornográficos evidencia o apelo que esse material tem frente ao público, especialmente o masculino, fazendo com que os cineastas se sintam mais seguros de acrescentar em seus filmes ingredientes dali provenientes. É o que ocorre com Shame. A roupagem mainstream – grande produção, bons atores, roteiro sofisticado e “sério” – mal esconde a realidade de um soft porn caça-níqueis.

Mas essa não é uma questão simples. A linha divisória entre pornografia e criação artística é difícil de traçar, sujeita que é a sutis determinações socioculturais. É o que mostra o uso da nudez na arte. Exaltada por gregos e romanos, a nudez entrou em relativo ostracismo com a implantação do cristianismo, voltando à cena com estardalhaço na Renascença. Michelangelo foi acusado de obscenidade e imoralidade ao expor o afresco O Julgamento Final na Capela Sistina, desencadeando um movimento de censura que exigia a remoção ou dissimulação das partes pudendas das figuras nuas ali pintadas.

O que teve início com Michelangelo cristalizou-se no Concílio de Trento, quando, entre tantas outras deliberações, ficou estabelecido que nada que pudesse estimular a concupiscência e a luxúria poderia ser exposto na arte patrocinada pela Igreja. Em outras palavras, a nudez estava definitivamente banida e condenada. Na bula papal de 1557, Paulo IV tornou obrigatório o uso de folhas de figueira para esconder os genitais das imagens pintadas ou esculpidas antes da proibição. A medida foi aplicada com empenho pelos papas Inocêncio X (1574-1655) e Clemente XIII (1693-1769).

Essa zelosa atitude foi retomada por Pio IX (1792-1878). Sob seu comando, todos os mármores da antiguidade clássica existentes no Vaticano tiveram seus falos destruídos e por cima das mutilações foram colocadas as folhas de figueira. Episódio semelhante ocorreu em 1897, quando a rainha Vitória foi presenteada pelo grão-duque da Toscana com uma réplica idêntica do David de Michelangelo. A estátua deixou a rainha escandalizada, motivo de sua imediata remoção para o museu de Kensington Gardens, onde foi providenciada uma folha de figueira que deveria ser colocada em defesa do pudor das damas que eventualmente aparecessem por ali em visita.

Se tudo isso nos parece lamentável e risível é por não atentarmos para o fato de que, de certa forma, resquícios dessa atitude persistem na atualidade, como estamos vendo nas repercussões em torno do nu frontal de Fassbender.

Em nossa cultura, a nudez feminina é corrente, chega a ser banalizada, o que não ocorre com a masculina, que continua sendo objeto de uma repressão maior. Isso se deve aos aspectos machistas apontados por Wollcott. O próprio machismo é um dos incontáveis efeitos imaginários da diferença anatômica existente entre os sexos, tal como Freud mostrou. As consequências psíquicas inconscientes dessa diferença não podem ser menosprezadas. Ter ou não ter o falo assume um papel de extraordinária importância no mundo mental de homens e mulheres. Símbolo de força e potência vital criadora, invejado e atacado, ameaçado permanentemente com possibilidade da castração, o falo ora se confunde com o pênis e se exibe orgulhosamente, ora se oculta misterioso atrás de folhas de figueira, panos e véus, afirmando uma mística e transcendente inacessibilidade, recusando-se a ser equiparado a um mero e vulgar órgão sexual masculino. Será por causa da forte carga significante do falo que a nudez masculina é mais censurada que a feminina?

O Ministério da Justiça acaba de lançar um Guia Prático da Classificação Indicativa estabelecendo o que crianças e adolescentes podem ver na televisão e no cinema. Fica ali liberada a nudez, desde que ela seja “sem conotação sexual”. Entende-se a intenção do Ministério em proteger crianças e menores, mas será possível dissociar o nu do sexual, do erótico? Não é a nudez que expõe a animalidade do corpo, as vergonhas da carne, a diferença dos sexos? Poderá ela algum dia ser vista com naturalidade? Estaria o Concílio de Trento totalmente equivocado ao atribuir à nudez o estímulo à luxúria e a concupiscência?

Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 31/03/2012

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