NOSTALGIA (1983), de Andrei Tarkovsky

Andrei Tarkovsky, um dos maiores cineastas russos, fugiu com a mulher para o Ocidente em 1983, deixando na União Soviética o filho que só reencontraria em 1986, ano de sua morte precoce aos 54 anos. Oficialmente atribuída a um câncer de pulmão, muitos a viram como um assassinato realizado pela KGB. Pouco tempo depois, ocorreriam os processos da Perestroika e Glasnost, que abriram a Cortina de Ferro.
Tarkovsky realizou cinco de seus sete filmes na União Soviética. Na Europa, fez dois: “Nostalgia” (1983), na Itália e “O espelho” (1985), na Suécia.
Em “Nostalgia”, a ação se passa no tempo presente, ou seja, nos anos 80. Andrei Gortchakov, um famoso escritor russo está escrevendo a biografia de Pavel Sosnovsky, um compositor russo que duzentos anos antes havia vivido na Itália, onde seu talento fora reconhecido. Não tolerando a nostalgia pela terra natal, voltara para a Rússia, onde tinha uma humilde posição social, caindo inicialmente no alcoolismo e depois no suicídio. Colhendo dados para seu livro, Gortchakov viaja pela Toscana, visitando os lugares por onde Sosnovsky passara. A bela guia tradutora que o acompanha tenta seduzi-lo, mas Gortchakov não corresponde a suas investidas. Na verdade, nada o interessa, como vemos nas cenas iniciais, nas quais diz ele que a paisagem brumosa da Toscana se confunde com a névoa russa, a língua russa se mistura com a italiana. Gortchakov se recusa a sair do carro e ver a “Madona del Parto”, de Piero della Francesca, apesar de ter percorrido uma longa distancia com esse objetivo. Preso que está de uma incontrolável nostalgia, diz não querer ver mais nada.
Prosseguindo viagem, o casal chega a Bagno Vignoni, a antiga cidade com termas medicinais, que no correr da história abrigou muitos hospedes ilustres, entre eles Santa Catarina de Siena. Na cidade, encontram Domenico, um homem tido como louco por ter passado sete anos trancado em casa com sua família, movido por um inexplicável medo. O escritor imediatamente se identifica com Domenico. Entende seu desespero, sua descrença na convivência humana, sua falta de perspectivas. Procura se aproximar dele, o que consegue depois de vencer uma resistência inicial. Ficam amigos e Domenico delega a Gortchakov uma missão simbólica: atravessar a piscina com uma vela acesa, .
Já em Roma para embarcar para URSS, toma conhecimento de que Domenico está ali e naquele momento prega no Campidoglio seu discurso moralizante e apocalíptico. Gortchakov se dirige para aquele local e presencia o momento em que Domenico encharca seu corpo com liquido inflamável e ateia fogo. Gortchakov suspende o retorno para casa e volta a Bagno Vignoni, onde finalmente cumpre a promessa feita ao amigo.
“Nostalgia” tem fortes tinturas autobiográficas. A nostalgia de Sosnovsky claramente ecoa a nostalgia de Gortchakov, que, por sua vez, reflete a nostalgia de Tarkovsky. A impossibilidade de morar na Russia/URSS e de lá sair definitivamente. A impossibilidade de estar na Itália e ali se adaptar. O desassossego, a angustia, o não ter um lugar onde repousar, um ter perdido para sempre o lar. Talvez a referência a Santa Catarina se explique no fato de ter ela lutado firmemente para superar o cisma que então dividia a igreja entre ortodoxos e católicos romanos, uma possível alusão à cisão interna de Gortchakov, dividido entre dois desejos inconciliáveis, necessitado de uma unificação pacificadora.
O filme tem uma clara dimensão política, mostrando um regime autoritário destruindo a liberdade de expressão e a criatividade de um artista. O aspecto psicanalítico existencial aponta para a impossibilidade de vencer a nostalgia causada por aquele desenraizamento definitivo que todos nós sofremos, a perda do objeto primário, a perda da mãe e a procura infindável de seu substituto.
Mesmo com enredo tão sugestivo, o que causa maior impacto em “Nostalgia” é seu aspecto formal. Não apenas por reafirmar premissas clássicas da linguagem cinematográfica, na qual as imagens visuais prevalecem sobre a palavra falada, mas por dar a elas uma nova dimensão. As imagens parecem surgir de uma temporalidade e uma espacialidade especiais, que as dotam de uma densidade simbólica que transcende o entrecho dramático e lhes dão uma inquietante autonomia.
Isso faz com que, acostumados com o ritmo narrativo da maioria dos filmes atuais, sintamos um profundo estranhamento ao ver “Nostalgia”. É necessário se acomodar a um novo parâmetro, no qual o tempo e o espaço, elementos indispensáveis presentes em toda obra dramática, deixam de ser apenas o pano de fundo para a ação dos personagens e adquirem um protagonismo que lhes dá uma quase independência em relação ao próprio entrecho narrativo.
Gortchakov vive entre dois mundos. As imagens da Toscana se fundem com as do campo russo, o cão transita entre a dacha e o quarto na Toscana, a cama onde dorme sozinho na Itália aos poucos se transforma no leito conjugal com a mulher grávida na URSS. Essas paisagens estão frequentemente misturadas, revelando o estado mental do mesmo, incapaz de se localizar e fixar afetivamente em uma delas. A extraordinária cena final, na qual vemos a dacha russa cercada pelas ruínas toscanas, sintetiza bem o mundo psíquico do personagem.
A esfumaçada indefinição das imagens que se fundem e confundem, misturando e condensando lugares e épocas diferentes, reproduzem com grande propriedade a atmosfera onírica que nos é tão familiar a partir de nossos próprios sonhos. Nesse sentido, Tarkovsky foi infinitamente mais feliz do que Christopher Nolan que, em sua superprodução “A Origem” (Inseption, 2010), propõe uma concepção tão esdrúxula do mundo onírico que deixa qualquer um perguntando-se se Nolan algum dia sonhou na vida…
A contraposição dos dois filmes ressalta a diferença entre o uso excessivo de recursos gráficos digitais e a elaboração delicada e sutil de Tarkovsky, observação que não pretende ser saudosista ou depreciativa dos avanços tecnológicos.
Os espaços claustrofóbicos da Igreja da Nossa Senhora do Bom Parto e as grandes ruínas da catedral sem teto, a casa invadida por um rio, a própria piscina termal de Bagno Vignoni, são lugares distópicos, atópicos, suspensos entre terras e tempos diversos, atemporais. As granulações e gradações de luz conferem uma estranheza às coisas, anulando sua banalidade, fazendo com que passem a representar um mistério que não nos compete decifrar, embora estejamos mergulhados nele até o pescoço.
Esse tratamento peculiar do tempo e do espaço dá à obra de Tarkovsky uma inserção na categoria do sublime, essa qualidade estética que nos assusta e fascina, que mostra a imensidão que nos circunda e ressalta nossa pequenez e fragilidade, que aponta para finitude de todas as coisas e de nós mesmos. A percepção de sermos apátridas, de termos perdido para sempre o colo materno, que jamais recuperaremos.
Essas peculiaridades formais de “Nostalgia” reaparecem na obra de Sokurov, um dos discípulos mais emuladores de Tarkovsky. Como homenagem ao mestre, reencontramos em seus filmes “Pai e filho” e “Mãe e filho” o mesmo tratamento do tempo e do espaço, o mesmo cuidado com as imagens, as mesmas longas e reflexivas tomadas.

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