Não se aprende samba na escola

Não se aprende samba na escola (*)

Sérgio Telles

Num país onde os serviçais domésticos são, na maioria das vezes, mulheres recrutadas em suas regiões mais pobres e colocadas, como o fez o ex-ministro Delfim Neto, na categoria de “animais em extinção“, o livro “Jakob von Guten, um diário”, de Robert Walser (Companhia das Letras, 2011), poderá parecer ainda mais inusitado do que de fato o é.

Nele o personagem que dá título ao livro, apesar de proveniente de uma família de posses, decide se matricular numa escola de serviçais para aprender a servir de maneira apropriada a futuros patrões da alta burguesia e da aristocracia, episódio ficcional baseado numa experiência vivida pelo autor, que, envergando libré, trabalhou como criado num castelo na Silésia.

Walser (1878-1956) é um escritor que tem recebido crescente atenção. Tendo tido algum reconhecimento no inicio de carreira, quando foi admirado por gente como Kafka e Hermann Hesse, entrou em relativo ostracismo ao passar os últimos 23 anos de vida em um manicômio na Suíça, sua terra natal.  Mais recentemente inspirou autores como J. M. Coetzee, W. G. Sebald e Enrique Vila-Matas, que sobre ele escreveram ensaios ou nele se inspiraram para criar seus próprios personagens.

Com vários de seus livros publicados em Portugal, “Jakob von Guten, um diário” é a primeira tradução brasileira. Como indica o titulo, nele vamos ler as anotações intimas do jovem Jakob, que tem como projeto de vida se despojar de todo e qualquer desejo próprio que não seja o de servir ao outro, a quem almeja obedecer de forma absoluta e subserviente. Com este fim, ingressa no Instituto Benjamenta, esperando ali aprender a receber ordens e cumpri-las da melhor forma possível e sem questionamento. No diário anota suas reflexões e fantasias, a relação com os colegas, suas opiniões sobre o programa de ensino e os professores, confessando grande admiração frente ao poder e majestade do Sr. Benjamenta e sua irmã, Srta. Benjamenta, diretores responsáveis que reinam incontestes pelos corredores e salas da instituição.

Escrito em 1907, “Jakob von Gunten” é uma bela comprovação de que os artistas são, de fato, as antenas da raça, como disse Ezra Pound. O aparentemente despropositado empenho de Jakob em ser um perfeito serviçal no universo confinado e tacanho do Instituto Benjamenta, revela-se como extraordinária percepção critica de uma sociedade que caminhava a largos passos para a hecatombe da Primeira Grande Guerra, que destruiria para sempre a idéia de um progresso linear, a fé na instrução como arma contra a barbárie.  O Instituto Benjamenta é a ridicularização da idéia de que a escola é o lugar onde o conhecimento e a cultura são transmitidos de uma geração à outra, onde os talentos dos aprendizes são detectados e  estimulados a produzirem o melhor, gerando crescimento e autonomia para cada um deles e para a sociedade.  De que adianta o longo processo educativo, se o que se aprende se distancia radicalmente de uma realidade brutal, descambando na submissão ao estado, ao qual se deve servir, indo-se morrer em guerras movidas por remotas motivações, alimentadas por irracionais patriotismos? Vai-se ao colégio para aprender e para construir o futuro ou para se submeter às autoridades? Não é melhor simplificar, deixar a hipocrisia de lado e organizar escolas cujo objetivo explícito seja o ensino da servidão aos poderosos da ocasião?  O estranho Instituto Benjamenta é como a grande barata de Kafka, uma imensa e complexa metáfora.

A esta leitura sócio-política do livro de Walser pode-se acrescentar o enfoque analítico, pois a atitude de Jakob parece francamente masoquista, de completa submissão ao desejo do outro. Ele mostra o gozo da servidão voluntária, do abdicar de qualquer independência para garantir a proteção de um amo e senhor, figura representativa de um pai poderoso do qual não consegue fazer o luto necessário para ingressar na vida adulta, permanecendo uma eterna criança.  Mas, ainda aí, Walser inverte o roteiro, pois Jakob passa da posição passiva e submissa à prática de uma tirania cínica e dissimulada com a qual triunfa sobre todos, percorrendo com isso o périplo do masoquismo ao sadismo.

Como vimos, o desencanto de Walser frente ao processo educativo está ligado ao momento político em que vivia, mas levanta questões ainda muito pertinentes.  Apesar dos avanços realizados, a educação continua basicamente focalizada nos aspectos cognitivos racionais conscientes da mente, ignorando a dimensão inconsciente descoberta por Freud. Isso significa que frente aos fortes sentimentos que nos inundam (ainda mais quando somos crianças), como medos, angústias, ódios, ciúmes, invejas, necessidade de dar e receber amor, o máximo que a escola faz é estabelecer os importantes e necessários limites repressivos, através da coerção física ou pela transmissão de princípios éticos, morais e religiosos. Nem sempre estas medidas são eficazes, resultando que no final cada um de nós vai ter de aprender a lidar sozinho com seus próprios demônios. Esta educação favorece a concomitância de aspectos cognitivos conscientes racionais que podem ser extraordinariamente desenvolvidos e uma gritante imaturidade emocional, um infantilismo afetivo – combinação neurótica que impede um manejo adequado da realidade. Todos conhecemos exemplos dessa discrepância interna, vivenciada em nós mesmos ou percebida em pessoas de nosso entorno, públicas ou privadas.

Recentemente dois casos ilustram bem o que estamos comentando: Paloci e Strauss-Kahn.  Como entender que homens como eles, cuja inquestionável inteligência se evidencia no fato de terem chegado ao topo do poder, possam ter agido de forma tão estúpida, colocando a perder a posição pela qual seguramente se empenharam ao máximo para conseguir? Na ausência de explicações lógicas, podemos evocar duas hipóteses psicanalíticas. A insolência do narcisismo onipotente reforçado pelo exercício do poder, a crença na impunidade, o se crer acima da lei. Ou um ignorado desejo autodestrutivo, secretas culpas que impossibilitam o usufruir daquilo pelo qual tanto se lutou.

A forma de lidar com estas poderosas correntezas subterrâneas que circulam em nosso intimo não se aprende na escola.

(*) Publicado no Caderno 2 do jornal  “O Estado de São Paulo” em 11/06/2011

Compartilhe nas redes

Facebook
Twitter
LinkedIn