Moral sexual “civilizada”, hoje – Transcrição de palestra realizada no XII Simpósio Erotismo e sexualidade contemporânea, na PUC-São Paulo, 2014

Moral sexual ‘civilizada’, hoje

Sérgio Telles

Transcrição da palestra realizada no XII Simpósio “Erotismo e sexualidade na contemporaneidade”, 31/10/2014, no Núcleo de Estudos Junguianos da PUC-São Paulo

Liliana: Agora eu vou convidar o professor Sérgio Telles que nos visita hoje na PUC, ele já é amigo dos junguianos, vejam bem… alguns psicanalistas são amigos dos junguianos, vocês contem para os colegas… E Sérgio Telles é psicanalista e escritor, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientes de São Paulo e coordena o grupo “Psicanálise e Cultura”, faz parte do corpo editorial da revista “Percurso”, é autor de diversos livros, um recentemente lançado. Ele mantém há 16 anos uma coluna mensal na revista eletrônica Psychiatry Online Brasil. Sérgio, muito obrigada pela presença.
Sérgio: Bom, quero agradecer as palavras cordiais, amistosas e generosas da Liliana. Realmente sou amigo dos junguianos de longa data. Estou em São Paulo desde 70 e presenciei a formação dos primeiros grupos junguianos com a Iraci, o Nairo, o Glauco, enquanto me encaminhava para os lados da psicanálise. Participei de alguns eventos junguianos, como o aniversário dos 90 anos da amizade de Freud e Jung. Bom, é um grande prazer estar aqui participando dessa mesa.
Quando Liliana me convidou, sugeriu o tema da sexualidade e erotismo, lembrando um texto, que está na internet, de uma palestra que fiz algum tempo atrás na Livraria Pulsional, sobre “como tratar a perversão”. Ao invés de retomar aquele assunto, achei melhor falar sobre “a moral sexual civilizada hoje”.
Por que escolhi esse tema? Porque Freud, em 1908, escreveu um livro chamado: “Moral Sexual Civilizada e o Nervosismo Moderno”. Em 2008, Néstor Braustein, analista argentino que mora há muitos anos no México, convidou um grupo de analistas – argentinos, franceses e brasileiros (entre eles eu) – para retomar esse tema e pensar no que aconteceu de 1908 a 2008, comemorando o centenário do livro. Disso resultou a publicação de “100 anos de novidade – A moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno de Sigmund Freud”, um livro de corte lacaniano, embora eu não seja um seguidor dessa linha. De qualquer maneira, achei que era interessante falar hoje aqui sobre esse tema.
O livro de Freud faz mais ou menos um retrato de como a sociedade, a moral e os costumes viam a sexualidade em 1908. Com isso temos um referencial para compararmos o que mudou deste então até nossos dias. O meu texto é um tanto extenso, tem muitas citações. Ao invés de lê-lo, acho melhor falar alguns tópicos do mesmo, fazer um resumo. Talvez minha apresentação fique mais atrapalhada, como ocorre quando a gente fala sem ler o texto, mas talvez fique um pouco mais viva. Liliana disse que este texto seria colocado no site da faculdade, do grupo, e vocês poderão lê-lo ali.
Bom, esse texto do Freud é muito interessante porque é um dos primeiros onde ele volta sua atenção para a cultura. De certa maneira “Moral Civilizada” é um prenúncio de “O Mal-Estar da Cultura”, que é a obra magistral de Freud sobre a relação do homem com a cultura, a forma como as pulsões se expressam na sociedade, na civilização. Em “Moral Civilizada” Freud fala que há um grande mal-estar exatamente em função da repressão das pulsões sexuais. A moral fazia exigências que provocava uma insatisfação muito grande para todos, mas especialmente para os homossexuais, os “invertidos”, como chamava, e os “perversos”, que estavam longe de poder responder aquelas imposições.
Para entender melhor as exigências da moral cultural, Freud propõe que, em relação à sexualidade, teria havido três estágios de civilização. O primeiro estágio seria aquele onde a sexualidade teria livre curso, sem nenhum empecilho. No segundo estágio, a sexualidade estaria reprimida e liberada apenas para fins reprodutivos. E no terceiro estágio da civilização, correspondente à atualidade em 1908, a sexualidade continuava reprimida, liberada para a reprodução desde que legitimada pela lei, ou seja, o sujeito pode ter relações sexuais desde vise fins reprodutivos e que esta reprodução esteja legalmente autorizada. As exigências da moral sexual do terceiro estágio excluem toda a sexualidade não heterossexual e mesmo nesta, termina por provocar sintomas como frigidez, impotência, insatisfações variadas, sobre as quais Freud se detém longamente, mostrando o grande custo pessoal e social daí decorrente. Diga-se de passagem que, naquele momento, Freud ainda não havia conceitualizado teoricamente importantes questões como a sublimação e a formação reativa.
De qualquer forma, as imposições da moral sexual civilizada levariam a uma incidência muito grande da masturbação, o que naquela ocasião era um tema da maior importância. Na virada do século XIX para o XX, no começo do século, havia cruzadas contra a masturbação e as jovens gerações eram aterrorizadas sistematicamente pelo poder médico, que afirmava ser extremamente perigoso o ato de se masturbar, que poderia levar à cegueira ou à loucura. Freud nunca assumiu essa postura terrorista em relação à masturbação, muito embora ele mantivesse que a masturbação era uma prática regressiva, na medida em que sempre remeteria à masturbação infantil, que está ligada ao complexo de Édipo, ou seja, será sempre uma sexualidade culpada e ansiogênica, aliás, como toda a nossa sexualidade vai ser. Então, nessa época, ele falava da grande insatisfação sexual, de suas consequências, da sintomatologia dela decorrente, da incidência e importância da masturbação e da questão familiar.
É muito interessante esse aspecto, pois talvez seja o primeiro texto de Freud em que ele mostra como a doença psiquica dos pais vai se refletir diretamente nos filhos. Então ele vai dizer que mulheres frigidas e homens impotentes, casais vivendo uma grande insatisfação sexual necessariamente provocará dificuldades para os filhos, que estarão presenciando atritos e hostilidades entre os pais, o que despertará neles uma precocidade afetiva que certamente os prejudicará no futuro. Isso é muito interessante, pois Freud, nesse momento, estava abrindo a porta para os futuros desdobramentos da psicanálise de família.
De certa maneira são esses os temas que estão nesse texto da “moral sexual” e nele Freud é muito otimista. Acreditava que a psicanálise poderia ajudar a modificar esse quadro, através de reformas sociais que modificassem as normas culturais e morais, de forma que a sexualidade pudesse ser exercida de forma mais prazerosa, sem tantos impedimentos e culpas, uma sexualidade que seria “livre, leve e solta”, como diria a música das Frenéticas.
Logo em seguida, este otimismo de Freud se desvanece. Em primeiro lugar, por que ele vai se dar conta que a sexualidade humana jamais será “livre, leve e solta”. A sexualidade humana está marcada pelo narcisismo e pelo édipo e será sempre muito reprimida, terá sim o seu prazer, mas será sempre muito difícil, e muito complicada, uma coisa a ser conquistada. Freud se apercebe que a questão da moral é muito mais ampla. Deixa de se preocupar com a “moral sexual” e vai se questionar sobre a moral em si, qual é a origem da moral e vai vinculá-la com o assassinato do pai, a introjeção da lei do pai, acontecimento que vai organizar o espaço psíquico interno e a realidade externa. Então o tema da moral é muito mais amplo do que simplesmente a moral sexual. E também ele vai ver que o mal-estar não decorre só da sexualidade. Com a descoberta da pulsão de morte, ele vai entender que o mal-estar também está ligado a violência, a agressão, destrutividade e vai finalmente dizer que para viver em sociedade – eu estou fazendo aqui agora uma passagem muito rápida pelo longo trajeto que Freud realiza em sua obra até escrever “Mal estar na Civilização” – temos necessariamente que reprimir as pulsões sexuais e agressivas, caso contrário a convivência em sociedade seria absolutamente inviável, e é por ser necessário fazer esta repressão que o mal estar é irreversível. A necessária repressão das pulsões sexuais e agressivas é a matriz do mal-estar na civilização.
Retomando o pensamento de Freud de forma cronológica, vemos que depois abandonar o otimismo reformista de “moral sexual” e estabelecer a universalidade do édipo, Freud vai afirmar que a sexualidade jamais será livre de empecilhos, pois a libido precisa de travas para ser despertada e acicatada. Afirma que nos períodos de grande liberação da sexualidade e licenciosidade dos costumes registrados na história, a libido cai, o amor se banaliza, o sexo perde o interesse. O exemplo maior é o “amor cortês” característico dos trovadores medievais, que Lacan retoma com grande detalhe. No “amor cortês”, o poeta ficava numa situação de idealização absoluta da mulher, colocando-a num lugar inacessível. O que está implícito nisso é que se existe uma facilidade muito grande nas práticas sexuais, uma liberação da sexualidade, aparece um desinteresse. Isso acontece porque o modelo da sexualidade é o Édipo, é a proibição e é necessário haver essa proibição a ser vencida.
Desenvolvendo ainda mais essa explicação de porque a sexualidade não pode ser livre e plenamente satisfatória, Freud vai lembrar que nós temos uma escolha bifásica de objeto. O que é escolha bifásica de objeto? É o fato de que nós temos um primeiro objeto amoroso – que é a mãe – objeto que todos nós, homens e mulheres, vamos perder, temos que perder esse primeiro objeto amoroso. Dessa forma, todo e qualquer objeto amoroso que tenhamos depois, será sempre um mero substituto, um sub-rogado e, como tal, jamais suprirá a falta, a perda daquele primeiro objeto idealizado e inigualável. Então essa troca de objeto própria da escolha bifásica, o fato de termos tido em primeiro lugar a mãe e termos de substituí-la por um outro objeto, fará com que esse objeto posterior seja sempre insatisfatório. Aliás, essa é uma questão que tem uma repercussão teórica muito vasta, motivo que é de ser o desejo impossível de se satisfazer, por definição o desejo não se satisfaz, é o motor da insatisfação.
Um outro motivo elencado por Freud para explicar que a sexualidade jamais será plenamente satisfatória decorre do fato de a cultura censurar e proibir determinados componentes parciais da sexualidade. Ele está se referindo – e é muito interessante esse aspecto da teoria, pois ai Freud fala do que se chama “repressão orgânica” – ao fato de que, em função de termos abandonado a postura de quadrúpedes e de assumirmos a posição ereta, bípede, nossas funções coprofílicas ficaram definitivamente impedidas de serem satisfeitas. Isto junto com o sadismo são duas fortes pulsões que não são, por definição, passíveis de serem satisfeitas. É mais uma marca assinalando a impossibilidade de ter aquela sexualidade plenamente satisfeita.
Essa questão é muito interessante porque mostra um aspecto da teoria onde Freud enfatiza muito a nossa animalidade – e é aí onde ele usa a famosa frase: “a anatomia é o destino” -, falando que nossos órgãos genitais estão localizados entre fezes e urina e, se a gente lembra o que acontece quando dois cachorros se encontram, que um vai direto cheirar a genitália do outro, o que está em jogo é exatamente isso, uma pulsão olfatória, se podemos falar assim, o olfato, que, na medida em que assumimos a função bípede e saímos do chão, sofreu uma transformação da qual nos ressentimos até hoje, ele tornou-se uma pulsão cuja importância jamais é reconhecida e aceita.
Com a evolução de suas descobertas, Freud vai se ater ao que chama de “as consequências psíquicas das diferenças anatômicas entre os sexos”, ou seja, ele vai estabelecendo a grande importância do complexo de castração, sua amplitude na constituição do sujeito e nas organizações sociais. Assim ele vai abordar uma questão que contradiz a suposta atração natural, biológica entre os sexos, a atração entre um homem e uma mulher. Ele vai mostrar algo que não é tão evidente, que fica mais reprimido: a hostilidade permanente entre o homem e a mulher. Ou seja, que ao lado da atração biológica, supostamente natural, há essa dificuldade, essa hostilidade, esse atrito entre homem e mulher, baseado exatamente na questão da diferença sexual e do complexo de castração, em função do qual se organiza a arrogância do homem, que, por ter o pênis, despreza a mulher por ela ser “castrada”, ficando a mulher ressentida e humilhada, com a inveja do pênis. Esse é um tema extremamente complexo, que continua extremamente atual. Gostaria de retomá-lo, relembrando que as feministas num primeiro momento rejeitaram como machista essa teorização de Freud. Hoje em dia, com a reformulação lacaniana da questão do falo e sua releitura da castração, as feministas americanas fizeram as pazes com a psicanálise. Depois podemos retomar esse tema. Digo isso porque tem muitas mulheres aqui e não quero que fiquem ofendidas quando eu falo em inveja do pênis. Fiquem tranquilas depois a gente volta a falar um pouco sobre isso (risos).
A diferença entre homem e mulher, a questão em torno do falo e da castração tem consequências muito grandes na sociedade, na cultura e, de certa maneira, é a raiz do patriarcado, uma das causas do machismo, algo que precisa ainda de muita reflexão, pois está longe de estar superado.
Em vários trabalhos Freud estuda as raízes da hostilidade entre o homem e a mulher, assim como Melanie Klein, e algumas hipóteses são levantadas. Em primeiro lugar vem a vivência de desamparo pelo qual todos nós passamos. Quer dizer, no início da vida, nós estamos entregues ao poder das mães, as mães têm extraordinário poder e nós estamos à mercê desse poder. Melanie Klein vai falar das fantasias terroríficas que a criança tem em relação à mãe, esta mãe que poderá ser canibal, quer dizer, voraz e destruí-la. Essas fantasias muito arcaicas de uma mãe perigosa, que ataca e tem um poder frente à qual se está completamente à mercê, seria uma das bases da hostilidade do homem para com a mulher, ilação possível decorrente das teses defendidas por Freud nos três textos de 1911, enfeixados no titulo ”Contribuições à psicologia do amor”, nos quais Freud fala sobre a vida amorosa do homem. São eles “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens”, “O tabu da virgindade” e “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor”. Nesses três trabalhos, que são muito interessantes, Freud mostra como o homem escolhe amorosamente a mulher baseado em fantasias arcaicas em relação à mãe. Em “Um tipo especial de escolha de objeto”, mostra aqueles homens que se apaixonam por prostitutas, coisa que é muito explorada na ficção, quando o homem acha que tem de “salvar” uma mulher, quando o homem acha que a mulher tem que ser salva. Isso é uma das versões do complexo de Édipo – a ideia de “salvar” a mãe desse homem terrível que é o pai. O que Freud está querendo dizer é que a fantasia do homem em relação à mulher está baseada nas fantasias arcaicas que tem em relação à mãe, e essas fantasias arcaicas estão ligadas em primeiro lugar às vivências de desamparo e posteriormente às vivências edipianas já mencionadas. Um outro elemento está mais diretamente ligada à castração propriamente dita, gerando fantasias ligadas ao seu genital terrorífico da mãe. Freud tem trabalhos muito interessantes que mostram a visão do sexo castrado da mãe como uma visão traumática, como no texto sobre fetichismo e sobre a Cabeça de Medusa. A visão do sexo “castrado” da mãe é apavorante.
Assim, o homem temeria a mulher por ver nela resquícios da mãe poderosa, onipotente, frente à qual estava em desamparo, ou como a portadora de um genital que o assusta muito, ou ainda a mãe edipiana que o trai e o abandona para ficar com o pai. Como disse antes, e muito interessante isso porque, mais uma vez, a psicanálise mostra como suas postulações se afastam completamente do modelo biológico ou fisiológico, no qual o sexo, a atração entre os sexos é uma coisa natural e espontânea. Freud está mostrando que a própria atração entre os sexos tem que vencer uma série de fantasias e resistências muito antigas e perigosas.
Essa visão do sexo feminino, materno, como perigoso e assustador para o homem seria um dos fatores para pensarmos um importante sintoma social que perdura há séculos na humanidade, que é o machismo, o patriarcalismo. Por que ainda hoje persiste a grande diferença social entre homens e mulheres, porque os homens tomaram o poder e agem de uma maneira violenta e destrutiva em relação às mulheres? A teoria psicanalítica nos permite pensar que o que alimenta essa situação é exatamente as fantasias arcaicas que mostram a mulher como muito perigosa e a atitude machista seria uma reação, uma formação reativa ao medo que os homens têm das mulheres.
Nesse sentido, a gente vê que, na fantasia do homem, a mulher transita de uma posição inicial de extremo e assustador poder para uma posição desvalida, de desprezo, descaso, quando passa a ser vista como um ser desprezado, humilhado, castrado.
Isso é universal, basta ler o jornal. Ainda recentemente estava vendo aqui em São Paulo a questão do “vagão rosa”, uma forma de proteger as mulheres de abuso sexual nas viagens de metrô. No Islã recentemente o Estado Islâmico se propôs a fazer uma infibulação, uma castração, de todas as mulheres entre 13 a 49 anos, pratica que dificulta, se não impede, o prazer sexual das mulheres. Há pouco também li que o primeiro ministro da Síria havia dito que as mulheres sírias estavam proibidas de sorrir, porque sorrir é um ato que atenta contra a castidade. Não sei se vocês viram isso, mas houve uma reação nas redes sociais, fazendo com que mulheres do mundo todo colocassem suas fotos sorrindo. Conto isso apenas como exemplos recentes do machismo, para mostrar como continua absolutamente pertinente essa discussão e como não temos outras explicações convincentes além das psicanalíticas para explicar, para entender a profundidade e universalidade do machismo. Esses exemplos são todos de países pobres, mas não devemos pensar que o machismo acontece apenas em países atrasados. Não sei se vocês viram o filme “Anticristo”, de Lars Von Trier, cuja ação se passa na Dinamarca de hoje e que mostra um episódio de misoginia que ecoa o feminicidio da Idade Média, da queima das bruxas, o que mostra a permanência dessas fantasias arcaicas determinando as relações entre homens e mulheres em todas as culturas e épocas.
Voltando à “moral sexual” de 1908, como entender a grande mudança acontecida nestes 100 anos? Da maneira como Freud descreve, naquela época, a moral não dava muitas alternativas quanto às praticas sexuais – ou era o casamento, satisfatório ou não, ou a abstinência. Freud enfatiza e critica uma questão importante do ponto de vista feminista, que é a chamada “dupla moral”, pois em 1908 enquanto havia uma grande leniência com relação ao comportamento sexual dos homens, havia um implacável controle da sexualidade feminina. Formalmente a sexualidade deveria se ater ao casamento, mais os homens tinham direito a uma vida sexual paralela, o que era impensável para as mulheres. Então houve, sim, uma grande mudança nos últimos 100 anos na “moral sexual”, o que nos coloca muitas questões para as quais não temos ainda respostas definidas, o que nos deve servir de estimulo para maiores reflexões.
O reconhecimento que houve mudanças nos costumes sociais, que a sexualidade está menos reprimida e negada, não contradiz os pressupostos de que a sexualidade jamais pode ser plenamente satisfeita, marcada que é pelo édipo, pela proibição, pela interdição, pela impossibilidade de dar satisfação a todas as pulsões parciais.
A importância dos costumes e moral na determinação das práticas sexuais é uma discussão muito atual, mas que não é muito nova, pois nos anos 30 os culturalistas, entre eles Erich Fromm e Karen Horney. Os culturalistas defendiam a ideia de que é a cultura e não a dinâmica pulsional o que determina a estrutura psíquica. É uma posição que curiosamente se assemelha aos teóricos da queer theory, da qual logo mais vou falar. Então esta é uma questão nova que não é tão nova…
De qualquer forma, o que teria proporcionado essa imensa, extraordinária mudança nas últimas décadas? Muitos de nós aqui que presentes, que temos um pouco mais de idade, vivemos essa mudança na pele… Muitos autores falam que o mandato superegóico mudou, enquanto há 50, 60 anos, e, ainda mais, 100 anos atrás, o mandato superegóico era: não pode ter vida sexual, não pode ter prazer. O mandato atual é: goze, você tem que ter prazer, você tem que ter vida sexual, você tem que gozar. Então é muito estranho, muito curioso. O que que teria ocasionado uma mudança tão radical? Há várias explicações, tentativas de justificar isso, que eu vou só citar, isso tudo demoraria muito tempo para gente falar.
Uma delas é a chamada declínio da figura do pai, embora, como vamos ver em seguida, seja complicado afirmar que realmente a figura do pai esteja em declínio. Tal declínio teria se iniciado com a Revolução Francesa. Roudinesco, em seu livro sobre a família, faz uma leitura extraordinária disso. Então há, sim, um declinio, um enfraquecimento da figura paterna que tem inúmeras consequências na constituição do sujeito. Em primeiro lugar, a ausência ou debilidade do pai não favorece à organização adequada do édipo, não se instala a castração simbólica, há uma persistência do narcisismo, com a incidência de relações fusionais, simbióticas, aditivas, comuns nas chamadas novas patologias. A não constituição do édipo e a persistência das relações fusionais da criança com a mãe se refletem em vários tipos de sintoma como adição à droga, como a obesidade, com os problemas orais.
Então há, sim, indubitavelmente uma queda da figura paterna, mas, por outro lado, vivemos no século passado situações onde figuras paternas extremamente fortes dominaram a história, como os grandes tiranos, os grandes ditadores, Hitler, Stalin, Mao. Então, por um lado, a figura paterna ficou mais debilitada e por outro se fortaleceu bastante, inclusive com a religião. Quando falamos que houve um grande declínio da religião, devemos levar em conta que isso aconteceu apenas nos estratos mais cultos e informados da população do mundo todo, pois houve, ao mesmo tempo, um imenso avanço da religiosidade no povo. Você hoje liga a televisão e vê aqueles pastores fundamentalistas, aqueles salões com duas mil pessoas, ali tem milagres, cegos veem, aleijados andam, acontece de tudo, não é mesmo (risos)? O que é um terror, eu vejo aquilo, aquilo pra mim é um filme de terror. É terrível ver o desamparo e a infantilidade da humanidade, sendo enganada e manipulada de forma tão descarada. Mas o que está em jogo ali são figuras paternas extremamente fortes, uma situação onde o infantilismo emocional é alimentado e tudo mais. Vê-se assim que a questão do declínio da figura paterna é algo mais complexo, que merece ser mais observado.
Um outro elemento que se fala como tendo influído na mudança da moral sexual são os movimentos cívicos e de direitos humanos, que no ocorrer do século passado cresceram, fazendo com que determinadas camadas excluídas da população tomassem consciência e começassem a lutar por seus direitos. Entre essas camadas excluídas estavam evidentemente as mulheres, que fizeram o movimento feminista, considerado por muitos como um dos movimentos políticos mais importantes da historia. Como já vimos, as mulheres foram submetidas pelos homens há milhares de anos. Mesmo as mulheres que tomaram o poder em algum momento, eram mulheres completamente identificadas com homens, extremamente fálicas. Através do feminismo, as mulheres reivindicaram o poder, reivindicaram a posse de o seu corpo, reivindicaram o pleno exercício de sua sexualidade. Isto é um avanço civilizatório imenso e séculos no futuro vão dizer o tamanho e a importância desta mudança. O mesmo vale em relação aos homossexuais, aos gays, lésbicas, GBLT, todo o alfabeto de excluídos que tomaram consciência da sua condição e lutaram pelo direito à diferença, criando um grande impacto na sociedade.
Um outro fator que pesa na mudança dos costumes é o novo estágio, o estágio atual do capitalismo, que saiu de sua fase de produção e entra na fase do consumo e do uso maciço da propaganda. Isso é um fator extremamente importante para nós psicanalistas – a manipulação da propaganda, a manipulação do consumo, a venda da ideia de que tudo se compra e que a compra vai trazer a felicidade. Então o objeto de desejo, que, por definição é inalcançável, é apresentado pela propaganda como algo acessível, ao alcance de todos. A propaganda confunde o objeto de desejo com o objeto de consumo. E aí, o que acontece? A pessoa compra aquele objeto de consumo, pensando que é o objeto de desejo e é feliz por um instante e logo se decepciona, vindo daí as “depressões”.
Não sei se vocês viram recentemente na TV ou YouTube, o Seinfelt, comediante do qual gosto muito, recebendo o Premio Clio, que é o prêmio mais importante da publicidade mundial. Seinfeld recebeu o prêmio de personalidade do ano, alguma coisa assim. Ele fez um discurso extremamente irônico, engraçado e corajoso porque nele dizia simplesmente que a propaganda é uma mentira sistemática, que é uma enganação sistemática, que as pessoas vivem comprando um bando de porcarias que não precisam, que vão jogar fora, porque aquilo não serve para nada, mas que entre o momento do desejo de comprar e o comprar, naquele momentinho elas são felizes, só ali (risos) porque… (risos) porque eles compram, chegam em casa e veem que aquilo é uma porcaria, uma merda, não serve para absolutamente nada e toda a fantasia de completude prometida, insinuada pela propaganda desvanece.
A meu ver, a verdadeira “análise aplicada” é a propaganda. Não sei se vocês sabem da história da propaganda, mas nela teve importância fundamental Edward Bernays, um primo de Marta, mulher de Freud. Esse cara, hoje reconhecido como um gênio da propaganda, foi quem deu assessoria ao presidente Wilson durante a Primeira Guerra Mundial. É muito importante a história da propaganda, a propaganda comercial e a propaganda política. Ela usa diretamente os pressupostos psicanalíticos para realizar uma manipulação de massa, uma infantilização, ela lida com desejo, alimenta fantasias infantis.
Voltando aos motivos da mudança acontecida na “moral sexual” entre 1908 e hoje. A própria psicanálise, embora não como Freud pensava em 1908, provocou grandes mudanças, assim como o consumo, o avanço da luta pelos direitos humanos e cívicos, o engajamento político das parcelas excluídas da sociedade, especialmente o feminismo e os grupos GTBLS.
Esses dois movimentos nos interessam especialmente por questionarem um aspecto importante da teoria psicanalítica, que é o complexo de castração. Tudo o envolve a formação da identidade sexual remete às consequências psicológicas das diferenças anatômicas sexuais e a forma como o sujeito vai lidar com a ameaça de castração, com o complexo de castração. Como já disse, a formulação original freudiana foi inicialmente muito repudiada pelas feministas norte-americanas, mas atualmente, talvez influenciadas pela leitura lacaniana, voltaram atrás, entendendo que a teoria freudiana apesar de reconhecer a extraordinária importância do significante falo, não alimenta a fantasia onipotente fálica. Pelo contrário, ela interpreta a fantasia onipotente fálica, afirmando que o falo é um símbolo da completude narcísica e que, assim, na verdade nenhum homem tem a completude narcísica pela posse de um falo, por ter um penis, pois está permanentemente ameaçado com a castração. Então não é porque o homem tem um penis, que ele tem o falo, que está no gozo da completude narcísica. Não, ele está sob permanente ameaça de castração. Por sua vez, a mulher por não ter o penis, pensa não ter o falo, e fica numa permanentemente insatisfação, sente-se castrada. Na medida em que o falo é um símbolo de plenitude narcísica, homens e mulheres têm de abdicar dessa fantasia onipotente e é isso que chamamos “castração simbólica”.
A oposição à teoria da castração hoje é sustentada mais pelos gays e pela queer theory, que eu não sei se vocês conhecem um pouco dela. Muito atuante na academia norte-americana, já está um pouco saindo de moda. A figura mais conhecida e respeitada entre nós é Judith Butler. A queer theory não aceita a diferença sexual, ela pressupõe que a questão de gênero é puramente cultural, ou seja, ela radicaliza aquele ponto defendido décadas atrás por culturalistas como Karen Horney e Erich Fromm. Como para a queer theory a diferença sexual é puramente um constructo cultural, ela invalida a importância estrutural do complexo de Édipo, tido pela psicanálise como uma estrutura universal, que independe do tempo e do espaço. Essa negação de pressupostos básicos da psicanálise pela queer theory levanta importantes questões.
A psicanálise, é claro, não pode ser contra os direitos de pessoas que durante anos, séculos foram absurdamente perseguidas, humilhadas, atacadas. É claro que temos de respeitá-las. Mas, por outro lado, temos um corpo teórico que não pode ceder a pressões políticas. Então como lidar com isso e forma produtiva e inclusiva? É um dos grandes problemas teóricos e práticos que enfrentamos no momento. Estive recentemente em Fortaleza para fazer uma palestra sobre esse mesmo assunto que lhes falo aqui, e uma das pessoas, uma senhora, me trouxe uma questão dizendo não saber o que dizer para o neto de dez anos que lhe veio contar que um coleguinha da escola, de sua mesma idade, ficava beijando a boca de todos os meninos da classe, igual a um personagem homossexual de uma novela que todos assistiam. Ela se dizia perplexa, não sabendo se o que ia falar seria considerado preconceituoso ou contra os princípios de aceitação das diferenças, das minorias.
Como psicanalistas, portadores de um saber sobre o inconsciente, o que podemos fazer numa situação como essa? Como lidar com a problemática da identidade sexual das crianças, a politização da questão, a aceitação, o preconceito, o kit a ser distribuído na escola, o Bolsonaro, o Jean Willis?
São sintomas sociais de uma confusão, de uma situação muito complicada que nós estamos vivendo hoje e que merece toda a nossa atenção. A psicanálise é contra tudo isso? Não. A psicanálise é a favor? Também não. A psicanálise não está aí pra ser nem contra e nem a favor. A psicanálise tá aí pra entender, pra analisar. Não sei se vocês lembram que Freud quando estava em Paris fazendo curso com o Charcot, o ouviu dizer algo assim: “a teoria é muito boa, mas isto não deixa de existir por causa da teoria”, ou seja, a teoria evidentemente tem que se curvar perante aos fatos.
Então frente a essa grande mudança que estamos vivendo agora, a meu ver uma das coisas que podemos fazer é justamente lembrar a fala de Charcot e reconhecer que realmente hoje muitas coisas fogem do nosso modelo estabelecido teoricamente, que pejorativamente é chamado pela queer theory de modelo normativo hetero-sexista. Devemos ter a humildade reconhecer estarmos diante de experiências novas, de não sabermos o que vai acontecer. Temos de aguardar para ver, será o desastre que imaginamos e tememos, por exemplo, nos casos de transexualismo, onde um sujeito submete seu corpo a transformações tão radicais, seriam mutilações incontornavelmente traumáticas ou não? Não sabemos bem ainda, não é? Para alguns transexuais a mudança é catastrófica, para outros não. Não temos ainda uma massa crítica pra termos uma ideia, mas são questões muito importantes que devemos ter em mente.
Sobre previsões catastróficas a respeito das mudanças que estamos vivendo, Roudinesco nos fala dos trabalhos do psicanalista Shengold, nos quais relata a patologia de famílias constituídas convencionalmente, ou seja, por um casal heterossexual, cuja loucura produz efeitos desestruturantes sobre seus filhos. Roudinesco usa essa argumentação pra contrabalançar o ataque daqueles psicanalistas que dizem que os filhos de pais homossexuais vão ser necessariamente muito comprometidos. Não é difícil fazer tal hipótese, pois supomos que tal composição familiar possa gerar nessas crianças maiores dificuldades identitárias, possibilidades de traumas e de bullying. Imaginamos que essas crianças terão de enfrentar grandes dificuldades. É possível que sim, mas temos de aguardar para ver, para não sermos conduzidos pelo preconceito. A verdade é que não sabemos ainda, não é? E Roudinesco nos diz que ter pais heterossexuais não é garantia nenhuma de que os filhos serão sadios e felizes, haja vista os casos de Shengold. Até hoje a humanidade sempre teve seus loucos gerados numa copula entre homens e mulheres heterossexuais, gestados nos úteros de suas mães. Esse talvez não seja um bom argumento, pois poderíamos dizer, se crianças geradas de forma “natural” ficam loucas, imagine se geradas pela tecnociência, de pais homossexuais. É uma preocupação, mas devemos deixar a questão em aberto.
Roudinesco critica a forma como os psicanalistas franceses lidaram com a questão do casamento gay em Paris, atitude que me parece mostrar esse impasse que temos enquanto analistas frente a essas novas questões da “moral sexual”. Os analistas franceses atacam o casamento gay, dizem que é uma coisa maluca, que é uma coisa narcísica, que as crianças adotadas ou geradas nessas circunstancias serão como bebês de pelúcia para satisfazer o narcisismo dos homossexuais. Foi uma postura muito violenta, essa assumida pelos analistas franceses, que paradoxalmente se aproxima da postura da igreja católica frente ao problema. Então se estamos pensando igual a Igreja Católica tem algo muito errado aí (risos), estamos ferrados. Como analistas, devemos entender tudo isso como sintomas instalados na cultura, um sintoma que devemos reconhecer e interpretar, algo que retoma a polêmica entre culturalistas e não culturalistas.
Devemos ter confiança no vigor da nossa teoria e na veracidade das descobertas freudianas, sem temer pô-la a prova nessas novas situações que parecem negá-la, saber que ela é forte o bastante para enfrentar os desafios dos novos tempos. Mas, é verdade, para tanto precisamos depurar nossa teoria de preconceitos que nela se aninharam. E nisso concordo plenamente com Robert Stoller, psicanalista californiano que faleceu há uns dez anos. Ele diz que mesmo nós, analistas, cada vez que temos de lidar com patologias de expressão diretamente sexual nós temos um imenso preconceito, nós nos afastamos delas. Agora, mais do que nunca, devemos usar nossos recursos teóricos e abstrair a carga de preconceitos imaginários que os sobrecarrega. Esvaziados os preconceitos que nela se instalaram, nossa teoria tem condições de sobreviver.
Já fui avisado que vou ter que interromper… Antes de encerrar, gostaria de acrescentar dois elementos. Um deles é sobre a questão da masturbação hoje. Poderíamos pensar que, dado a suposta grande liberdade sexual na qual vivemos, a masturbação seria algo meio anacrônico, uma pratica em total desuso. Tal ideia seria um grande equivoco. Porque digo que é um grande erro? Porque a pornografia via internet é um fenômeno dos nossos tempos, universal e extraordinário. E esse era o segundo elemento que gostaria de mencionar, a pornografia, tema que deveríamos passar horas falando aqui, que eu acho da maior importância e que é um tema quase sempre negado. Não se fala disso, é uma vergonha falar que se vê pornografia. Você coloca “porn” no Google e são listados 110 milhões de sites, 110 milhões de sites de pessoas vendo pornografia, mas não se fala a respeito. Lembro novamente Stoller, pois ele faz uma leitura que me parece muito adequada da pornografia. Penso que, hoje em dia, a masturbação é quase que uma pratica preponderante. Não só pela intima ligação com a pornografia, mas por todas as outras costumes sexuais de hoje, como o “ficar” e o sexo casual. Esses costumes seriam relações sexuais, se entendemos que numa relação existe um outro, uma outra pessoa a quem me dou, a quem respeito, a quem quero agradar e cuidar, um outro que me força sair do meu narcisismo? Ao que tudo indica no “ficar” e no sexo casual não existe o outro, não há uma relação com o outro. São relações puramente narcísicas, masturbatórias, são masturbação a dois. Então eu acho que a masturbação continua sim na ordem do dia e deveria receber mais atenção de nossa parte.
Agradeço a atenção, desculpem se falei muito rápido. Eu tinha muita coisa pra falar e queria falar. (palmas) Obrigado.
L: Muito obrigada Sérgio, nós vamos ter umas perguntas depois no final.
S: Infelizmente não poderei ficar até o final, tenho um compromisso às oito.
Liliana: Então doutor Sérgio, vamos abrir para duas perguntas, mas tem tantas né (risos)
Denise: Muito obrigada, Sérgio, pela sua brilhante palestra. No começo do nosso evento a gente falou sobre pornografia, exatamente a gente levantou a questão da falta de estudos psicológicos sobre essa questão que é universal, tá aí a maior indústria hoje, maior indústria do mundo, indústria pornográfica, não como patologia, mas como…
Sérgio: Sintoma social… Sintoma social.
Denise: Sintoma social. Eu acho que esse tema merece aprofundamento e estudos psicológicos.
Sérgio: Seguramente.
Liliana: Duas perguntas, uma.
Denise: Pessoal acho que mais uma pergunta.
Liliana: Mais uma, mais uma.
Plateia: Oi, boa noite. Meu nome é Regina França, não é uma pergunta é só um comentário que você falou sobre homossexualidade e eu sou uma pessoa que já escrevi sobre isso, sobre terapia com casais do mesmo sexo, então eu penso que esse tema é um pouco tênue, só pra dizer que existem inúmeras pesquisas sendo feitas sobre as consequências da educação de filhos criados por pais do mesmo sexo e nenhuma pesquisa confirma que os problemas sejam maiores ou diferentes do que na população em geral. Claro que as crianças também têm problemas, estão distribuídas na mesma faixa, na curva normal, isso é o que se sabe até agora, existem muitas pesquisas sendo feitas sobre isso, era só um dado que eu queria passar.
Sérgio: Acredito que sim, é nesse sentido que eu digo que o preconceito nos faz projetar e fazer muitas fantasias. Eu acho que do ponto de vista objetivo essas crianças vão ter uma carga a mais, seguramente terão. Mas isto não quer dizer que filhos de casais heterossexuais estejam isentos, pois seus pais podem ser muito doentes e isso também será uma carga difícil. Ai fica elas por elas. Em relação ainda a essa questão do preconceito, e do preconceito contra a pornografia, eu sempre menciono o fato de que se dizia que a pornografia incitava o crime sexual, o abuso contra a mulher, o abuso contra a criança e isso era citado em muitos trabalhos ditos científicos. A internet acabou com tais crenças na prática, ou seja, se essas afirmações fossem minimamente verdadeiras, estaríamos tendo uma pandemia de crime sexual. Como isso não ocorre, fica provado o preconceito, a fantasia, a projeção e a dificuldade de pensar a sexualidade, apesar de mais de 100 anos de psicanálise. Mas isso não deve nos surpreender. Para nós a sexualidade será sempre um tema muito complicado, pois está justamente vinculada aos nossos maiores dramas, o drama incestuoso edipiano, aos nossos maiores conflitos, à nossa própria estruturação enquanto ser humano. Então será sempre assim.
Plateia: Na verdade é um comentário, não é uma pergunta. Parabéns pela sua palestra, o senhor traz um elemento que, a meu ver, ao se discutir sexualidade, um dos (pontos) mais importantes é a questão do desejo e Freud fala que é uma pulsão inconsciente que nós jamais teremos acesso, nós a representamos em nossa consciência muitas vezes oportunamente, daí se dá uma série de conflitos, eu só queria realçar isso.
Sérgio: Posso responder ainda? Eu vou lançar em breve o meu terceiro livro da série “O psicanalista vai ao cinema” e estava revendo o filme do Almodóvar. Acho Almodóvar muito interessante, na medida em que ele coloca todas essas questões da sexualidade de hoje, transexualismo, famílias atrapalhadas, refeitas, homoparentais, enfim… todo esse mundo novo que nos é desconhecido de certa maneira. Acho que Almodóvar é o cartógrafo desse novo mundo, uma pessoa que fala sobre essas novas configurações amorosas. Estava revendo o filme “A pele”, que mostra muitos aspectos teóricos freudianos, como, por exemplo, a fantasia infantil de que não existe a mulher como tal, a mulher é sempre um homem castrado, o que explica por que o personagem cirurgião resolve aprisionar um rapaz, castrá-lo e fazer dele uma sósia de sua mulher falecida. Se ele queria recriar sua mulher, seria mais fácil ele pegar uma mulher e fazer uma operação plástica que a deixasse com feições semelhantes às de sua mulher. Mas não, ele quis criar uma mulher a partir de um homem. Isto é a fantasia clássica infantil – o próprio Deus fez a mulher de um homem – de que existe apenas o gênero fálico, não existe o gênero feminino per se, a mulher será sempre um ser castrado, um homem castrado. Mas um dos aspectos mais interessantes do filme é que o rapaz era apaixonado por uma empregada de sua mãe que o rejeitava por ser lésbica. Ao ser castrado e transformado em mulher ele volta e tenta mais vez se aproximar da moça. É muito interessante porque se coloca a questão do desejo e do gênero. Para Almodovar não existe desejo homossexual ou desejo heterossexual. Existe desejo, desejo pelo objeto do desejo, objeto da falta que transcende o sexo, o gênero. O que se deseja não é necessariamente homem ou mulher, é aquilo que representa a ansiada completude narcísica. Poderá ser homem, poderá ser mulher, poderá ora ser homem ora ser mulher. Devemos levar em conta na clinica essas flexibilizações de gênero apontadas por Almodóvar
Liliana: Vou chamar a professora Denise que vai anunciar nosso próximo palestrante.

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