MERGULHADOR DE ACAPULCO

MEGULHADOR DE ACAPULCO, SÉRGIO TELLES

Artigos

ARNE LUNDGREN

MEGULHADOR DE ACAPULCO, DE SÉRGIO TELLES

“Este é, em outras palavras, aproximadamente o mesmo ‘milieu’ retratado por Mário de Andrade em sua obra, mas aqui ele é apresentado quase sempre sobre um fundo ainda mais sombrio.”
Arne Lundgren

Sérgio Telles retrata sobretudo a classe média urbana, vislumbrada em bares, locais de diversão ou em sua vida doméstica.

Com frequência, seus contos abordam casamentos desgastados pela rotina, relacionamentos frágeis que mal se sustentam ou então pessoas vítimas de doenças, estresse ou acidentes de trânsito.

Habilmente, capta a gíria dos estudantes, bem como a dos profissionais liberais – uma classe privilegiada que pode viajar para a Argentina ou para a Europa, ali passando até seis meses, enquanto a grande maioria de brasileiros está lutando diariamente pela sobrevivência.

Essa classe frequentemente fica entediada com a rotineira mesmice do expediente nas manhãs chuvosas e frias de São Paulo.

Este é, em outras palavras, aproximadamente o mesmo milieu retratado por Mário de Andrade em sua obra, mas aqui ele é apresentado quase sempre sobre um fundo ainda mais sombrio, especialmente quando se refere ao tempo da ditadura.

Por exemplo, no conto intitulado O Décimo Dia entramos num centro de tortura, surpreendendo seus variáveis “regimes de trabalho”, quando os torturadores se alternam em comportamentos ora brutais, ora amáveis, ora burocráticos.

Tudo é direto e impiedoso, homens sacrificados como ovelhas, segundo um torturador, justamente para “pagar algum mal que cometeram em outras encarnações, outras vidas”. O mesmo castigo espera, presume-se, os próprios torturadores em sua descendência.

CLAUDIO WILLER

“Em um nível mais profundo de análise, podemos observar a riqueza metafórica de “Mergulhador de Acapulco” ao falar da condição humana, da situação do escritor e do próprio sentido da literatura.”
Claudio Willer

Mergulhador de Acapulco é mais um argumento em favor da produção literária brasileira contemporânea, mostrando que não há entressafra ou decréscimo da criatividade. Existe, isso sim, um problema editorial, fazendo com que este e outros textos de qualidade levem alguns anos para vir a público. Isso, mesmo quando já premiados e, alguns deles, publicados em suplementos literários de prestígio, como é o caso da obra de Sérgio Telles.

Esta coletânea de contos mostra, entre outras coisas, que há um ciclo da narrativa realista que ainda não se esgotou. Essas amostras do inferno burguês e metropolitano, esses fragmentos do cotidiano brasileiro, no que tem de cruel e lírico – já vimos isso antes, na literatura e ao vivo. Mas as situações e personagens reaparecem, vitalizados, com mais força, graças ao talento, à capacidade de observação e à sensibilidade do autor. A esticada noturna de Programa, por exemplo: tomamos parte nela, presenciamos essas cenas, mas isso não impede que sejam revividas em todo seu horror, pela mão de Sérgio Telles.

Em um nível mais profundo de análise, podemos observar a riqueza metafórica de Mergulhador de Acapulco ao falar da condição humana, da situação do escritor e do próprio sentido da literatura.

Em vários dos contos aparece um texto, mediando a ação ou intrometendo-se nela. Por exemplo, em A Arte de Presentear, onde o texto é destruído mas continua presente, tornando-se irreversível.

Sérgio Telles nos mostra, neste e em outros de seus contos, como a criação literária é inseparável da vida, transformando-a, mudando seu sentido.

Na mesma linha, merece especial destaque Cara Doutora Frieda. Poderia ser um mero depoimento profissional, já que Sérgio também é analista. Mas é admirável como o protagonista do relato vai se enxergando e se transformando, enquanto escreve sua carta para a terapeuta. Ela vai passando da queixa para a descoberta da sua autonomia e liberdade, ou seja, de sua cura. Metaforicamente, esse conto nos mostra a criação literária como instrumento de ampliação da consciência e da própria condição humana. Essa metáfora é válida, certamente, para o que Sérgio Telles escreve, e para os resultados decorrentes da leitura de seus contos.

DULCE MIDLIN

“A capacidade para dizer tanto com “tão pouco” é toda do autor. (…) A manutenção do suspense na narrativa tensa, de linguagem enxuta, precisa…”
Dulce Midlin

Sérgio Telles trabalha bem a linguagem (ele sabe que aí reside tudo), deixando os assuntos se diluirem nas palavras – estas, sim, tecidas em opacidade: literariamente. Para se fazerem ver, notar.

Disse “assuntos” de propósito, e não “conteúdos”. Assim, p.ex., em “A Letra T”, o “conteúdo” (gradação visual e semântica: echarpes – xales – lenços / elegância – alegria – inquietude, impaciência, tristeza, pemar) fica submerso, para a sensibilidade do leitor poder resgatá-lo e daí poder dialogar com o texto, reconstruindo no imaginário a história que “não” foi contada, a história de uma vida (a da mãe), alegres arroubos da juventude, na azáfama da condição de dona-de-casa e mãe-de-família, na curva descendente dos anos desbotados, com cheiro de adeus.

A capacidade para dizer tanto com “tão pouco” é toda do autor. […] “Cartas, Telegramas, Telefonemas” é enunciação de quem conhece (ou tenta conhecer) o ser humano, […] A manutenção do suspense na narrativa tensa, de linguagem enxuta, precisa. O mistério não revelado, literalidade construída palavra por palavra, solicitando mais uma vez a intervenção do interlocutor implícito (“e daí? e aí?”).

Você não sabe, tampouco eu. Isso importa? O que é que importa? Flagrar o momento, como em “Mergulhador de Acapulco”? Apostar numa linguagem nova, num formato novo (parece um roteiro para ser encenado, o narrador se comporta como um diretor de cena, ou um camera-man, aproximando-se do “ente”, recuando, nesse movimento “deixando passar” toda uma visão de mundo, de vida, de morte?).

O “outro”: projeção do “eu”? Desmaio não é uma meia-morte? De novo o “eu” que reaparece para recontar a mesma história de “A Letra T” (uma obsessão do autor?) e revestir o núcleo temático que se vai configurando aos poucos: Thanatos, sempre.

Veja “Despedida”, mais um “flash” de uma agonia cujo fim já conhecemos. Agonia que se transveste de “inconsequente conversa de botequim” em “Missão Cumprida”: ainda a obsessão. E mais a postura de não saber, e “saber” que é impossível saber. Privilégio da indagação que persiste. Como literatura, quando a recusa às respostas deixa no ar o constrangimento da impossibilidade. Mas é por aí. Literatura não é para apaziguar.

EDUARDO CAMPOS

“Sérgio Telles não possui apenas talento para escrever contos, mas se serve de um largo conhecimento cultural, podendo transferir para o papel, em linguagem desenvolta, direta, e de forma bastante pessoal, a sua florente inspiração literária.”
Eduardo Campos

O Ceará ganha mais um contista, a confirmar-nos a tradição de berço de perceptíveis vocações para o exercício ficcional da pequena história. Trata-se do escritor Sérgio Telles (46 anos), que estréia com surpreendente vigor na curta narração, dando ao leitor trinta curtas histórias, trabalhos algumas vezes curtos, ou curtíssimos, qual o que dá titulo ao livro (“Mergulhador de Acapulco”, Imago, Rio, 1992), e outros como o “Programa”, extenso, mas não prolixo, respeitada aqui a sutileza da qualificação semântica.

O surgimento o contista cearense, que antes (e isso quer dizer 1988) ganhou menção honrosa, consagrante, no Concurso de Contos do Paraná, admite de mim algumas observações à margem; e a exemplo, que a florescência intelectual do Ceará não se faz mais na província, e é, entre nós, talvez à míngua de estímulos mais explícitos para a vivência literária. Desse modo, em área geográfica distante da nossa, pelo Sul do País, efetiva-se com dignidade alguns inesperados representantes de nossa criatividade literária. E nesse caso, vale citar: Ana Miranda, que adentrou as letras com “Boca de Inferno”; Hilda Gouveia de Oliveira, com seus romances e estudos, e agora, Sérgio Telles, o contista.

Quanto ao último, além de ser convincente no manejo da pequena história, tem garantido merecido espaço nas colunas dos principais jornais de São Paulo, onde há demonstrado suas qualidades de repórter e articulista, valendo, a destaque, a memorável entrevista que conseguiu junto a Peter Gay, um pensador erudito, mas sobremodo anfratuoso à abordagem jornalística.

Que pode colher o leitor dessa apreciação? Que Sérgio Telles, médico, psicanalista (e o livro percorre muitas vezes clima de estranho mundo desfrutado pelos oníricos), professor, entrevistador, é escritor que não possui apenas talento para escrever contos, mas se serve de um largo conhecimento cultural, podendo transferir para o papel, em linguagem desenvolta, direta, e de forma bastante pessoal, a sua florente inspiração literária.

O contista Sérgio Telles não é um autor “bonzinho”, bem comportado, em certos momentos, não raros, lembra a desinibição de Henry Miller ou a dolorida amargura de Salinger, remetendo o leitor, nesse caso ao livro deste ultimo autor, “Nove Histórias”.

Noutros momentos é diáfano, um tanto apegado ao coloquial com cheiro de sala-de-visita, ou mesa de bar em pileque de oprimidos tradicionais. Mas, numa e noutra circunstância, creiam-me os que me seguem o pensamento, vivencia o humanista, o escritor que não esconde a sua indecisão entre as virtudes e danações que narra.

O contista que conta o conto nesse livro tem boa formação intelectual e escreve perseguindo o êxito, despreocupado com o choque e a acidez de algumas palavras de trânsito doméstico, íntimo. E coloca em cena uma galeria de personagens que parece não inventar, pois, muito ao contrário, são ocasionais freqüentadores da vida que nos cerca. Só não se revelavam em melhor condição por faltar alguém como ele, o autor, para identifica-los; vulgares, e nem sempre pouco sórdidos, mas humanos.

ESDRAS DO NASCIMENTO

Fui botando uma cruzinha à esquerda dos contos que ia classificando de bons e excelentes e vinte deles se enquadraram nestas categorias.

Que contos!

“Cara Doutora Frieda”, “Sofro em solos de sax” e “Programa” são obras-primas indiscutíveis.

Você está de parabéns. E nós todos que participamos da mesma briga. É, sem dúvida, maravilhoso ver um companheiro realizar um trabalho significativo.

F. S. NASCIMENTO

“Mergulhador de Acapulco é fruto de amadurecidas incursões no terreno da curta-ficção. Justamente por ser percuciente artífice do gênero, as narrativas que esse volume encerram atestam uma consistência técnica que somente a experiência costuma proporcionar. Há de se reconhecer que a visão de mundo ali explicitada, ampla e múltipla, resulta em fluxos e projeções existenciais aliciantes e plenamente aferíveis, cumprindo-se o papel da ficção, que é o de, reproduzindo casos e vivências, gerar a ilusão de realidade ou idealidade, a confundir-se nessa última hipótese com a poesia.”

J. J. VEIGA

“Seus contos (Mergulhador de Acapulco) têm um padrão de qualidade invejável e não dá para dizer de qual ou de quais gostei mais – todos são melhores. Você é um escritor malicioso (no bom sentido), começa sorrateiro, como quem está apenas ciscando, e quando o leitor percebe está enredado, envolvido e aceso. Essa é uma técnica que não se aprende. Quem a intui é escritor.”

LÊNIA MÁRCIA MONGELLI

“Sérgio Telles é um escritor inegavelmente talentoso e a maioria dos contos revela o domínio seguro da linguagem ficcional, a destreza para lidar com fragmentos, recortes da vida que se adaptam muitíssimo bem à forma escolhida.”
Lênia Márcia Mongelli

SCom O Décimo Dia e outros contos, João Sérgio Siqueira Telles ganhou, em 1988, menção honrosa no Concurso de Contos do Paraná: esta obra, ampliada com novos contos, gerou o MERGULHADOR DE ACAPULCO, cuja história com o mesmo título foi traduzida para o sueco em 1994, participando de Fran Urskog till Megastad – Brasiliansk litteratur översatt och presenterad av Arne Lundgren.

As atividades literárias de Sérgio Telles estavam até então preferencialmente voltadas para a imprensa escrita, pois fez parte da equipa inaugural da revista Veja (1968), além de colaborar em jornais de Fortaleza (Ceará), sua terra natal (1946), e mais tarde, depois da mudança para São Paulo (1970), em periódicos como O Estado de São Paulo e jornal da tarde. Médico formado pela Universidade Federal do Ceará, especializou-se em Psicanálise na capital paulista, onde tem sua clinica e é professor do grupo Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1980.

Mesmo que desconhecêssemos a formação científica de Sérgio Telles, os textos de MERGULHADOR DE ACAPULCO (trinta ao todo) denunciariam por si só a óptica do psicanalista profissional ou do leigo obcecado em devassar escaninhos obscuros da alma humana a partir de certos indícios comportamentais. Nem sempre este casamento entre o médico e o ficcionista dá certo; é a situação de alguns (poucos) contos que parecem presos à esfera de “casos clínicos”, como por exemplo La Vecchiaia é bruta, cuja protagonista é uma senhora aparentemente bem casada que se deixa envolver pelo velho “cafajeste” e “tarado” do condomínio, cheia de piedade por sua solidão. Às vezes as deformações psíquicas conduzem ao “absurdo” e ao “realismo fantástico”, como em Carta de Betim, de matiz algo hiperbólico.

Contudo, Sérgio Telles é um escritor inegavelmente talentoso e a maioria dos contos revela o domínio seguro da linguagem ficcional, a destreza para lidar com fragmentos, recortes da vida que se adaptam muitíssimo bem à forma escolhida. Os textos são em geral extremamente curtos e alguns deles se avizinham da reportagem policial, preservados o suspense, a surpresa, o enigma.

Sempre que o amor do detalhe se alia à precisão e à economia da dicção, deixando de lado as dissertações um tanto enxundiosas do narrador na 3a. pessoa (preferido por Telles);

sempre que a personagem ganha preponderância sobre o observador via de regra “de fora”, o resultado é explêndido de veracidade: em Resolução, talvez o melhor e mais sóbrio conto da obra, assistimos aos momentos finais de um jovem suicida, àquelas hesitações previstas no acto de consumar o gesto derradeiro.

Sabiamente, o desfecho trágico ocupa apenas três linhas: “Foi compassadamente ao quarto, abriu o saco de aniagem, tirou o rifle de dentro, carregou-o e deu um tiro na cabeça” (p. 156). A objectividade assindéctica da frase atribui ao desenlace o tom certo, sustentado pelo sumário conflito que o antecede, também resumido a parcíssimas palavras, quase que formuladas pelo protagonista: “Pegou um dos cadernos, e, ao folheá-lo, viu como estava rabiscado com aquelas siglas que inventara. Lembrava o significado das mais recentes, as mais persistentes, como HDV – Hei de vencer; NDTM – Não devo ter medo; CL – Chego lá; ISW – I shall win”. E não são poucos os exemplares como este, em que a criatura rompe as amarras e parece prescindir do criador: “Nocaute”,”Cartas, telegramas, telefonemas”,” Amizade”, “Sentença de Morte” são contos muito bem conduzidos.

Como compete a qualquer psicanalista que se preze, os temas de MERGULHADOR DE ACAPULCO estão, de uma ou de outra maneira, vinculados às memórias de infância (ou a outras memórias quaisquer, tão marcantes quanto elas): uma simples espreitadela ao espelho e a descoberta da calvície precoce é o pretexto para se recordarem as espinhas da adolescência e todas as dificuldades de auto-afirmação a elas correlatas; amigos reencontrados ensejam melancólicas conversas sobre o passado e não raras vezes a localização, aí, de frustrações presentes; a figura da mãe é a sombra que perpassa as lembranças das personagens, às voltas com a turbulência do rítmo moderno e carentes de aconchego. O cenário é urbano, patrocinador de neuroses; a classe social focalizada, a média burguesia, que desde o século XIX nos acostumamos a situar no centro dos dramas.

Sérgio Telles não é um escritor dado a experimentalismos verbais, como tantos que procuram, por esse meio, suprir a escassez de imaginação. Ciente de que a vida é que tem de ser transubstanciada em arte, apenas burila os desencontros que ela oferece ao bom observador, com a segurança artesanal de um artista em franca evolução.

MALCOLM SILVERMAN

“As narrativas de Sérgio Telles (…) chegam ao âmago, captando a natureza humana, particularmente o lado fraco, vulnerável da gente.”

Gostei imensamente de Mergulhador de Acapulco… e é sempre mais fácil e mais agradável quando a leitura é a gosto! Passei 2 dias lendo, sorrindo, concordando e apreciando, tanto a forma que Sérgio Telles adota quanto o conteúdo/temática. Acho que isso se deve mais à sua mestria como ficcionista e também, em grau menor, ao fato de eu, o leitor, poder me identificar certinho com a classe e a geração que o autor tão habilmente retrata, aliás, recria, fotografa por dentro pois seus contos, embora produzam uma ambiência notável, externa, palpável, são mais ‘flagras’ psicológicos – e a sondagem – a seu crédito, pois não é fácil – nada diminui qdo. narrada na 3ª pessoa, também.

As narrativas de Sérgio Telles, para mim, são ‘tradicionais’ no ‘bom’ sentido da palavra: enxutas, extremamente críveis, polidas; chegam ao âmago, captando a natureza humana, particularmente o lado fraco, vulnerável da gente.

São sofisticadas – como convém a um elenco pequeno-burguês (paulistano), lidam bem demais com a ironia e o suspense, o desfecho inesperado; com o ‘flash’, cujo toque de contraste freqüentemente não resulta contrário (exceto, é claro, cronologicamente) e sim paralelo aos eventos do momento. Seu estilo, para resumir, muito me lembra o de Lygia Fagundes Telles, outra perfeccionista.

Só lamento que não tivesse conhecimento anterior de sua contística pois teria gostado de incluir uma amostra no meu O NOVO CONTO BRASILEIRO, de uns anos atrás.

MARÇAL AQUINO

“Observador atento do cotidiano, o que interessa ao autor de Mergulhador de Acapulco é capturar o que resta de humano nas relações entre as pessoas, nas mais diversas situações.”
Marçal Aquino

Um livro de estréia, mas não de um principiante. Os textos de um estreante experimentado, amadurecido em suplementos literários, mostram perfeito domínio do difícil gênero das histórias curtas.

É possível que muitos leitores já conheçam os textos de Sérgio Telles – dos tempos em que os jornais tinham suplementos literários e publicavam trabalhos de novos autores. Foi nesses suplementos que, durante anos, este cearense radicado em São Paulo publicou boa parte dos 30 contos que integram seu primeiro livro, MERGULHADOR DE ACAPULCO. Trata-se, portanto, de um livro de estréia, mas não de um escritor principiante. Ao contrário, Sérgio Telles revela com este conjunto de textos um perfeito domínio do gênero. Alternando o ponto de partida de seus contos entre situações corriqueiras e inesperadas, ele consegue instaurar climas insólitos que fascinam e prendem o leitor – cumprindo, assim, o postulado básico da boa literatura. Cabe destacar aqui um índice da maturidade deste contista: sua impressionante capacidade de constituir realidades, para nelas inserir personagens cuidadosamente elaborados. Os temas dos contos variam, mas Sérgio Telles parece ter um predileção especial por examinar personagens e situações extraídos da classe média, a paulistana, em particular. Expondo esse universo em episódios contundentes, ele traz para seus textos os momentos em que as máscaras insistem em cair, desnudando uma felicidade postiça. O resultado, nesses contos, é devastador. Observador atento do cotidiano, o que interessa ao autor de MERGULHADOR DE ACAPULCO é capturar o que resta de humano nas relações entre as pessoas, nas mais diversas situações.

Assim, os personagens de contos como Programa, Rememorando, Tertúlia e Classe Média Blues irmanam-se na incapacidade de compreender o mundo. Esmagados por revelações brutais, nada resta a eles senão continuar esse jogo de aparências e exibicionismo, não importando se ao final – do expediente, da noite, da vida – o que lhes resta é o imenso vazio.

Outro aspecto a ser destacado nos contos de Sérgio Telles é seu traço lírico. A história do homem que espera por algo que altere a feroz rotina de seu dia-a-dia no conto Cartas, Telegramas, Telefonemas nada tem de patético. Antes, é o retrato pungente de alguém que se agarra com fúria a essa entidade misteriosa, a esperança, para não sucumbir à simetria de sua vida.

O lirismo também dá o tom ao conto Relatório, uma pequena jóia construída com simplicidade e vigor. E a mesma delicadeza de que o autor se vale para comentar, num flash, o que pode haver de tocante no encontro corriqueiro de um grupo de pessoas à beira de uma piscina é usada para ontros fins. Um exemplo disso é o conto Carta de Betim. Partindo de um incidente banal, Sérgio Telles constrói um texto marcante por seu desdobramento inesperado, o que subverte qualquer expectativa. O resultado é assustador, especialmente pela incômoda possibilidade que o episódio encerra de tornar-se real. O mesmo efeito vale para o texto Feita para quem não está morto, no qual um atropelamento, cena corriqueira nas ruas de uma grande cidade, deflagra uma reflexão inusitada no personagem-narrador.

Constituído basicamente por registros urbanos, MERGULHADOR DE ACAPULCO impressiona pela variedade das situações que aborda, alternando climas introspectivos e outros explícitos. Todos marcados por uma construção elaborada, que configura, afinal, uma vigorosa visão do mundo contemporâneo. Mais do que isso, o livro serve para marcar a estréia de um escritor maduro, dono de uma escrita segura. Que, enfim, já passava da hora de ter seus contos reunidos em livro, oferecendo a um número maior de leitores a oportunidade de se encantar com as texturas delicadas e intensas que são a marca de seu trabalho.

 

Márcio Ferrari

Quando o insólito rompe o cotidiano.

Contos de Sérgio Telles vão do corriqueiro ao fantástico.

Por Márcio Ferrari, para o Valor, de São Paulo

 

Trinta anos separam o lançamento de “Mergulhador de Acapulco” e a atual reedição. O tempo decorrido confere a vários dos 30 contos a qualidade de testemunhos da época em que foram escritos. Por outro lado, prolonga até a atualidade os cenários do cotidiano da classe média, tema da maioria das narrativas.

Não é, certamente, casual que o autor lance mão de um expediente da literatura pop ao citar marcas comerciais em vias de desaparecer que fazem parte dos momentos mais banais da vida de seus personagens (revista “Manchete”, creme de barbear Williams, sabonete Encalol, apresuntado Swift). Elas lembram que, como observou Jorge Luis Borges, a atualidade às vezes é anacrônica.

Sérgio Telles, que além de escritor é psicanalista, explora caminhos semelhantes aos de Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles quando explora o território das aparências enquanto prepara um acontecimento ou “insight” que rompe a superfície. “Para um bom artista, não há picuinhas”, teoriza um personagem do conto “Tertúlia”. “Se você é bom, sua história, seu quintal, sua vidinha, tudo terá reflexos amplos”.

Quando o tema é sexo – e a trivialidade com que a libido brota no tempo – Telles chega a momentos ousados. Encontram-se nesse registro o conto em que uma mulher jovem recusa o julgamento da comunidade e cede aos avanços de um idoso “tarado”; a história de um adolescente que se serve de uma inesperada fonte de gozo e ainda o desenho de um triângulo amoroso sub-reptício entre dois amigos e a mãe de um deles.

Alguns contos do livro, como o belo “Sofro em grandes solos de sax” são fragmentos confessionais, mas a maioria deles se resolve, com relativo distanciamento, em histórias acabadas, urdidas com engenhosidade e culminando em desenlaces surpreendentes – o que acelera e torna prazerosa a leitura. A linguagem segura e o ritmo sob controle fazem por vezes os textos se aproximarem das crônicas do dia a dia praticadas pelos mestres brasileiros do gênero.

Os pequenos comentários de autores e críticos na contracapa e na orelha da edição apontam essas qualidades dos contos de Telles. Ao ressaltar, com razão, a desafetação e a originalidade do escritor, o falecido romancista Marcos Rey observa que ele “não vai de Joyce e nem de Kafka”. No entanto, a inspiração kafkiana se faz notar nos contos de cunho fantástico, talvez os melhores da coletânea.

Incluem-se nesse filão um diálogo enganosamente prosaico sobre vida extraterrestre e um pesadelo de grandes imagens surrealistas. Em outros dois contos, Telles sublinha o absurdo de situações demasiadamente reais: sessões de tortura organizadas “profissionalmente” e os métodos contemporâneos de criação de pintos, que distorcem radicalmente as vias naturais (o título irônico desta narrativa é “Natureza sábia”).

Dois outros contos merecem ser destacados pela singularidade. “Os cones da Filadelfia” une as duas vias principais do livro – o corriqueiro e o insólito – ao dar vazão aos pensamentos de um homem durante um procedimento dentário. “Cara doutora Frieda” é a carta de uma ex-paciente a sua analista, na qual se queixa de que “não era bem isso o que eu esperava da alta”.

O tempo provocou algum desgaste a contos que adquiriram feições caricaturais, como aqueles povoados por representantes da classe média intelectual (ou apenas pedante) e o relato do encontro de um quase bêbado com uma mulher trans. Mesmo esses textos, contudo, contribuem para um acurado painel da vida urbana, suas pequenas alegrias e seus grandes fracassos.

 

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