MENTES EM FÚRIA e CONCEBIDO COM MALDADE

No livro AS FÚRIAS DA MENTE, de Teixeira Coelho – Iluminuras – 1998 – seguimos o drama vivido pelo persongem ao tomar consciência de seu estado depressivo. Procura um psiquiatra e dele recebe informações sobre a “doença” e a medicação necessária, sem que nenhuma importância seja dada a sua vida pregressa, com os eventuais conflitos que poderiam estar desencadeando sua depressão.

Perplexo, o personagem se apercebe das transformações que nele provocam a medicação. Até então entendia a depressão como uma característica de seu caráter e modo de ser, um traço de sua personalidade. Ela adviria de todas as experiências de sua vida, de seu passado, de sua história. Toda a cultura, toda a literatura e a psicanálise o tinham feito pensar assim (pg. 59/60). Muitas vezes valorizara sua melancolia como um refinado filtro com o qual enxergava o mundo, expressão de dotes artísticos e filosóficos, pressuposto para uma produção intelectual de nível, selo que marcava sua superioridade sobre o resto da massa.

O desaparecimento da depressão com a medicação desencadeia no personagem uma forte crise de identidade, um questionamento radical sobre si mesmo. Sente-se perdido, com a sensação de um “completo desapossamento de si mesmo” (pg 151). Seria ele ainda o mesmo? Se tudo não passa de uma questão de dosagem de serotonina, que fim levaram sua filosofia, a psicanálise, sua própria vida? Estaríamos vivendo a quarta quebra do narcisismo do homem? Seria este o advento do “homem-glândula”?

Como uma fábula moral, o livro de Teixeira Coelho antevê um mundo futuro onde as subjetividades estarão ausentes. Na medida em que as drogas neuroquímicas se mostram tão potentes e capazes de controlar e modelar as reações emocionais, que importância ainda teriam as experiências pessoais únicas e intransferíveis decorrentes da vida, do passado, da história vivida por cada um, aquelas que estruturam a própria personalidade? As pessoas seriam facilmente controladas – por si mesmos, pelos outros – através das drogas neuroquímicas. A ILHA DE MOREL, de Bioy Casares, lembrada com uma certa minudencia, parece indicar isso.

Uma leitura mais detida levanta algumas questões. Chama atenção a forma como está construído o personagem. O autor nos priva de qualquer informação sobre sua história, seus planos, seus sonhos, seus sofrimentos e satisfações. Sequer ficamos sabendo seu nome. É designado apenas como “ele”. Tudo o que ficamos sabendo a seu respeito é o que foi explicitado acima – a crise existencial na qual incide ao constatar a remissão de sua depressão e as mudanças daí decorrentes.

Se é verdade que o autor parece deplorar o enfoque que reduz o homem à sua biologia, a mero produto de suas secreções glandulares, pareceria legítimo esperar – para ter uma coerência interna – que mostrasse a falácia de tal postura fazendo seu personagem expor uma larga e complexa história, um passado pleno, reafirmando – através da Literatura – que o destino humano transcende a biologia e se realiza na História e na Cultura. Ao recusar-se terminantemente a dotar seu personagem de um passado e uma história (que, diga-se de passagem, dar-lhe-ia mais consistência e veracidade), parece incorrer no mesmo erro que deplora.

Em função dessa ambivalente contradição, faz seu personagem oscilar permanentemente entre uma lamentação pela perda dos valores psicanalíticos (pg 59), que permitem um entendimento do psiquismo diferente daquele proposto pelo enfoque “glandular”, e um sentir que tal perda é uma libertação, pois “detesta as imagens psicanaliticas repisadas” (pg 39), recusa-se a “ajustar-se para suportar o mundo que a psicanálise oferecia” (pg 104). Ao mesmo tempo que “ele” fica perplexo com a redução à biologia feita pelo psiquiatra, ele mesmo se recusa a enfrentar seu passado, a tentar entender sua depressão dentro do referencial existencial, vivencial. Diz várias vezes que “detesta” o passado (pg 134), que ele é “insuportável”, “inaceitável” (pg 34), gera uma “culpa nunca ultrapassada” (pg 88), tem que “ser enterrado” (pg 140).

A atitude do personagem poderia ser usada como um exemplo de resistência através das defesas de racionalização e intelectualização. Por outro lado, suas negações apenas reafirmam a extraordinária importância do passado como fator determinante de seus afetos, pois se o mesmo lhe é tão insuportável é por manter uma condição dolorosa e atual em seu psiquismo.

Essa escolha do autor resulta um empobrecimento do personagem e do próprio entrecho ficcional, pois na medida em que “ele” não pode explicar ou compreender seu estado em função de suas vivências, de sua história, resta-lhe fazer magras especulações sobre as relações existentes entre depressão e os trabalhos criativos, a escrita, a música, o cinema, a pintura.

O interessante é que, apesar de tudo, “ele” termina por dar algumas pistas deste passado “insuportável” quando fala da “seriedade infantil” elogiada pelos pais, máscara que assume para agradá-los e que se lhe gruda na face (pg 130). Em poucas palavras se insinua aí o drama constitutivo de todos nós, a máscara decorrente da alienação no desejo do Outro, a presença dos pais e a infância, o eventual perder-se nas fúrias de uma relação edipiana passional.

É necessário dizer que “ele” tem sobre a psicanálise uma visão não só ambivalente como não muito clara. Considera-a como um “esforço místico” (pg 97) ou “poético” (pg 115), afirmações que teriam feito Freud tremer na tumba. Confunde-a com mera catarse (pg 133), promotora da “realização dos sonhos infantis” (pg 115). Não tem idéia da dimensão trágica introduzida por Freud ao postular a existência e a força determinante do Inconsciente, que acorrenta o homem à recorrente compulsão à repetição.

A perplexidade que acomete a “ele” ao melhorar com a medicação, se não é uma novidade, não deixa de ter pertinência. Há muito a ciência e a filosofia mostram que a apreensão da realidade é algo complexo, irredutível a uma mera questão de percepção sensorial. A isso a psicanálise acrescenta a questão do desejo inconsciente, que deforma e distorce a realidade – radicalmente na psicose e de forma mais benigna na neurose. Muito já foi dito sobre o mundo próprio da paranóia, da melancolia, da histeria, da obcessividade, da perversão, etc.

É possível que uma medicação adequada, ao retirar um sintoma depressivo crônico, faça uma pessoa ver a vida com novos olhos. Por outras vias, não deixa de ser este também o efeito de boa análise, ao proporcionar ao analisando o entendimento e a superação dos fantasmas que o envolvem, causando uma sintomatologia penosa (angústias, fobias, depressões, etc), inibindo ou dificultando o uso de seus potenciais.

Misto de ensaio e ficção, AS FÚRIAS DA MENTE, de Teixeira Coelho, trata pois de assunto muito atual. Capta alguns impasses existentes trazidos pela desenvolvimento da neurociência, cuja ênfase excessiva empobrece a abordagem psiquiátrica, fazendo-a ignorar a dimensão histórica e simbólica do ser humano, a construção da subjetividade, com suas determinações conscientes e inconscientes. Mas esse é um problema que transcende a literatura, não é o que importa ao autor.

A leitura de AS FÚRIAS DA MENTE provoca uma reação curiosa. Suscita algumas vezes a lembrança das narrativas moldadas dentro do figurino do “nouveau roman”. Ficamos restritos a uma minuciosa descrição da superficie da mente do personagem, sem o autor nunca ousar mergulhar em águas profundas, na história, no passado, nos projetos, nos sentimentos e afetos, nos sonhos, nos conflitos, elementos que comporiam um enredo, uma trama. Por isso mesmo, causa uma certa frustração, pois em nenhum momento somos efetivamente confrontados com as “fúrias da mente” prometidas no título.

Se não vemos as “fúrias da mente” no personagem “ele”, inteiramente aprisionado em infindáveis e estéreis cavilações obcessivas, em contrapartida elas são muito visíveis em CONCEBIDO COM MALDADE, livro de Louise DeSalvo recentemente lançado pela Record – 1998.

Em CONCEBIDO COM MALDADE a autora analisa quatro obras literárias: “The Wise Virgins” de Leonard Woolf, “Women in love” de D.H Lawrence, “The Antiphon” de Djuna Barnes e “Crazy Cock” de Henry Miller.

A tese da autora, baseada em pesquisa séria e extensa bibliografia, é que tais obras foram “concebidas com maldade”, são veículo de vinganças, ataques e agressões de seus autores contra o que viveram como grandes injustiças e humilhações, penosas situações de vida, ódios contra a família, antigos amigos ou amantes.

“The Wise Virgins” foi a vingança ciumenta de Leonard Woolf contra o grupo incestuoso e promíscuo de Bloomsbury, que o esnobava enquanto judeu pobre de família pouco refinada. O livro provocou a primeira e séria tentativa de suicídio de Virginia Woolf. Com “Women in love”, D.H. Lawrence, preso a intensos conflitos depressivos, faz fulminante ataque a Lady Ottoline Morrell, a quem devia muitos favores. “The Antiphon” é uma tentativa de Djuna Barnes de exorcisar os chocantes abusos sexuais e emocionais que lhe foram infrigidos por sua família psicótica durante toda sua infância e juventude. Em “Crazy Cock”, Henry Miller também tenta elaborar os abusos sexuais dos quais fora vítima e sair da relação psicótica com a mãe, projetada em sua amante June.

As idéias de DeSalvo são uma aplicação às vezes um tanto simplificada de aspectos da teoria psicanalítica sobre a gênese da obra de arte, da literatura. É grande a bibliografia psicanalítica sobre as vinculações entre vida e obra do escritor, forjando novas ferramentas para a compreensão, a crítica, e a análise da produção literária.

Relações primárias familiares, laços de sangue, amores, ódios, ciúmes, invejas, fortes pulsões sexuais, intensos sentimentos e desejos geradores de conflitos e culpas – são estas as efetivas “fúrias da mente”, matéria prima que após o processo de sublimação dará origem às obras literárias.

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