“mãe!”, de Darren Aronofsky

“Mãe!”, de Darren Aronofsky

Sérgio Telles

O espectador sente um crescente incômodo durante a exibição de “Mãe!” (2017), último filme do premiado diretor Darren Aronofsky, autor do bem-sucedido “Cisne Negro” (2010). Talvez por não conseguir enquadrá-lo de imediato em nenhuma das categorias às quais está habituado. Seria esse um filme realista ou surrealista? Seria um filme de suspense, um drama psicológico, um policial, uma grande farsa? Tampouco consegue ele se identificar bem com as situações e personagens, tudo o deixa confuso e perdido.
Vemos um casal, formado por um homem maduro e sua jovem mulher, morando numa grande casa antiga que ela afirma estar restaurando sozinha, algo que de imediato soa estranho, pouco verossímil. A casa se situa na clareira de uma mata, cercada de árvores por todos os lados. Ele é um famoso poeta que procura a reclusão visando reencontrar a inspiração, vencer o bloqueio que o impede de escrever. Ela zela pela casa e pelo conforto de ambos. Mas logo eles começam a receber visitas inesperadas de desconhecidos que se transformam em hóspedes, à revelia da dona da casa, mas com a total beneplácito do proprietário, o que gera perplexidade nela e nos espectadores. O incessante e crescente afluxo de visitantes instala o caos na casa, até a explosão que a destrói, provocada pela mulher.
As situações bizarras, as reações desconcertantes do personagem principal, o poeta, tudo impõe ao espectador o trabalho de interpretação. Como entender sua infinita tolerância e complacência, sua ilimitada hospitalidade que não leva em conta os apelos da mulher? Estaria ele louco? E aquelas pessoas, como entender-lhes o comportamento de admiração irrestrita ao poeta, o que elas querem, o que significa tudo aquilo? A própria casa aos poucos mostra peculiaridades surpreendentes, as paredes parecem respirar, têm feridas, cicatrizes, reage às intempéries como um corpo vivo.
A confusão permanece até o fim, quando num bom exemplo do que chamamos de “compreensão a posteriori” ou “posteridade” (après-coup ou Nachtraglichkeit), de repente entendemos tudo, as peças do quebra-cabeça até então estavam misturadas se encaixam e o quadro se apresenta em sua evidência última e definitiva.
Aquilo que até então nos parecia uma obra manqué, mal executada, bisonha, um passo em falso de Aronofsky, que é seu roteirista e diretor, entendemos ser uma escolha deliberada, uma narrativa que propositadamente não facilita a costumeira identificação dos espectadores com as situações e personagens apresentadas, algo arriscado que poderia fazer fracassar o projeto e que fica caracterizado especialmente pelo uso frequente da câmera fechada no rosto da atriz, artifício que gera no espectador uma sensação claustrofóbica, de estar fechado num espaço pequeno, de não ter a visão do todo, de não conhecer o contexto geral – como de fato ocorre, desde que ele não entende bem o que está acontecendo, tal como acontece com a personagem, cercada de estranhos que a ignoram ou desconsideram.
Quando compreendemos, ficamos rendidos pela ousadia de Aronofsky em enfrentar um tema tão abrangente, empreendimento que poderia ser excessivamente pretensioso, mas no qual, no frigir dos ovos, saiu-se muito bem. Ele cria uma espécie de cosmogonia, na qual representa a relação de Deus com os homens em sua versão judaico-cristã. Nela alinhava dois episódios decisivos do Primeiro e do Segundo Testamento: a chegada de Adão e Eva com seus filhos Caim e Abel, e o nascimento de Cristo com seu subsequente sacrifício que deu origem ao sacramento da comunhão, no qual é ingerido pelos seguidores.
Com esses elementos, Aronofsky mostra as incongruências das relações entre os homens e a divindade. Enquanto a mulher (representando a humanidade) vive ansiosa buscando uma relação de exclusividade com o poeta (deus) e em zelar pela propriedade, ele se interessa por todos e é indiferente à propriedade, a casa está aberta e qualquer um tem livre acesso a ela. O deus mostrado por Aronofsky é autocentrado, narcisista, encantado com a adoração da multidão. É indiferente ao destino individual de cada um e impassível frente aos desvarios da humanidade, como os que ocorrem de forma alegórica na própria casa, sem que ele procure impedi-los – o aparecimento dos rituais religiosos e o fanatismo que deles decorre, as manifestações de violência como guerras, segregação, campos de concentração, a formação de massas ensandecidas à procura de um pai que as guie e console. Um deus que, em sua posição desumana ou sobre-humana, permite o sacrifício do filho e deixa que a multidão o devore e, quando a mulher – mãe! – reclama, ele diz apenas que daquela tragédia poderá nascer algo valioso. Mais importante ainda, é um deus não onipotente, pois lhe imprescindível a adoração de seus fiéis, como mostra toda a ação do filme e, especialmente, a cena final, quando arranca o coração do peito da mãe (o amor, a paixão, a adoração) e o transforma no seu amuleto, um objeto valioso, indispensável, do qual não pode abrir mão para continuar criando.
No diálogo final, o escritor – Deus – diz que só sabe criar, só pode fazer isso. E de fato, contrapondo-se à destrutividade dos homens, que se matam e eliminam mesmo aquilo que consideram o mais sagrado, só resta a infinita criatividade divina, estabelecendo com isso o ciclo infindável de criação e destruição que se observa não só entre os homens, mas no próprio universo, conceito muito bem construído no filme, na medida em que ficam equiparados o começo e o fim.
As alegorias do filme possibilitam outras interpretações, como a ecológica (a casa, viva e pulsante, seria nosso planeta Terra), a de gênero (o embate entre o patriarcado machista e a submissão feminina), a busca desesperada pela celebridade alimentado pela espetacularização da midia. Mas penso que a proposta do diretor é mais ampla e transcende esses temas.
É muito mais uma reflexão sobre a condição humana, a procura de um deus pai que garanta que nossa própria destrutividade não prevalecerá, que ela será contraposta pela criatividade que precisamos acreditar que está em deus, quando, na verdade, ela está também em nós. O próprio título do filme “Mãe!”, um tanto enigmático, indicaria isso. Remete evidentemente a Maria, a que dá luz ao filho de Deus para que os homens o destruam e posteriormente o comam no maior dos sacramentos do cristianismo, mas também, de maneira mais abrangente, representa a própria criatividade. A maternidade, a mãe, é um grande símbolo da criatividade humana.

Compartilhe nas redes

Facebook
Twitter
LinkedIn