Freud visto pelos alemães

jornal O ESTADO DE SÃO PAULO publicou em seu suplemento literário “Cultura” de 11 de julho último um extenso artigo, traduzido do semanário alemão “Der Spiegel”, onde Freud e a psicanálise são atacados e vilipendiados com grande virulência.

Calcado em cima da opinião de alguns poucos terapeutas alemães e suíços, e usando o recém-publicado livro WHY FREUD WAS WRONG, de um inglês Richard Webster, o artigo mostra sua parcialidade e injustiça ao pinçar episódios da conhecidíssima biografia de Freud para apresentá-los de forma escandalosa e distorcida, bem como por não ouvir a outra parte interessada, ou seja, todo o grande contingente que não concorda as bobagens ali assacadas.

A meu ver, isso tem sua razão de ser. A situação da psicanálise na Alemanha é muito específica. Com a ascensão do nazismo, a psicanálise foi desbaratada, seus praticantes forçados a emigrar ou a sofrer um enquadramento ideológico exercido pelo Göring-Institute. Passada a guerra, a psicanálise foi reinstalada, sofrendo ainda hoje grandes dificuldades internas e externas, de fácil compreensão.

Como é sabido, um dos pressupostos da psicanálise é a existência de lembranças e idéias reprimidas e censuradas, sendo a terapêutica uma tentativa de resgatá-las, trazendo-as à consciência, reintegrando-as no contexto da vida psíquica. Esta tarefa enfrenta consideráveis resistências, que pretendem manter o “status quo”.

Se isso é verdadeiro universalmente, no caso da Alemanha tal situação recebe um reforço extra, pois frente a culpa e a vergonha decorrentes do passado nazista, há um complô de silêncio, uma tentativa de apagar e negar tal passado, um esforço para manter a repressão e a negação, posturas que impossibilitam a elaboração do luto e da culpa.

Poucos têm a coragem do prefeito de Hamburgo, von Dohnanyi, que em 1985, ao mencionar os dilemas vividos pela identidade alemã em conflito com a necessidade de enfrentar seu passado, disse; “Todo aquele que diz o nosso Bach e o nosso Beethoven e… eu teria de acrescentar Goethe… precisa dizer também o nosso Hitler”.

Assim sendo, a psicanálise é malvista e malquista pela sociedade alemã, como pode ser comprovado por quem se der ao trabalho de acessar o site da importante revista psicanalítica AMERICAN IMAGO, cujo número 52:3 (outono 1995) aborda o tema “Psicanálise e Poder”, sendo a maioria dos artigos dedicada ao problema “Psicanálise/Alemanha”.

Se, por um lado, é necessário denunciar este artigo como inverídico e injusto, configurando-se como um trabalho de desinformação do público, com fortes determinantes de origem política, nem por isso se deseja alimentar uma hagiografia da figura de Freud, atitude tão perniciosa e equivocada quanto sua demonização. Muito menos queremos negar os problemas que a psicanálise atravessa. Eles existem e são muitos, mas não são os que ali estão descritos.

De certa forma, o artigo, como um todo, mais parece ser uma típica reação projetiva, na qual são Freud e a psicanálise os que devem se envergonhar de seus feitos, e não o nazismo.

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