“Eu, mamãe e os meninos”, de Guillaume Gallienne,

“Eu, mamãe e os meninos” (Les garçons e Guillaume, a la table!, 2013), de Guillaume Gallienne

Sérgio Telles

O filme é uma obra de Guillaume Gallienne, que escreveu o roteiro, interpretou dois papeis (o dele mesmo e o da mãe) e dirigiu. Foi exibido no Festival de Cannes de 2013 na Semana dos Diretores, quando ganhou o Prêmio Cinema de Arte e o Prêmio SACD (Societé des Auteurs et Compositeurs Dramatiques).   Em Janeiro 2014, concorreu em 10 categorias do 39º.  Prêmio Cesar francês e ganhou o de Melhor Filme e Melhor Primeiro Filme. indicado para, como ele mesmo diz,.

A história, com fortes elementos autobiográficos, é simples – com dois irmãos, Guillaume é tratado sistematicamente pela mãe como menina. Na hora de chamar os filhos à mesa, ela diz – “Meninos, Guillaume, para a mesa!” – com isso negando-lhe a masculinidade compartilhada com os irmãos e o colocando como um ser aparte, de sexo indefinido.

Extremamente ligado à mãe, de quem se apropria dos maneirismo e se transforma numa cópia,  Guillaume se torna um menino efeminado, motivo de constante ridicularia por parte dos irmãos e pasmo do pai, que não o compreende e o deixa com a mãe quando sai com os outros dois filhos, especialmente nas férias. Transferido de um colégio para outro, mandado para estudar na Inglaterra, nada muda na inadaptação de Guillaume, que não se adéqua ao comportamento masculino, aos esportes e só pensa nas atividades femininas da mãe.

No colégio termina se apaixonando por um colega e se desespera quando o vê com uma namorada. Vai contar para a mãe sua tristeza e ela tenta tranquilizá-lo, dizendo que há homossexuais felizes. Tal afirmação o deixa completamente perplexo, pois até então se via como uma filha da mãe, uma menina e não um menino e, ainda por cima, homossexual. A partir daí, em conversas com as amigas da mãe e tias, resolve testar sua inclinação sexual, frequentando ambientes gays e tentando concretizar alguns encontros homossexuais. Num deles, numa manifestação de racismo às avessas do habitual, é rejeitado por não ser árabe, e no outro, ao ver o parceiro nu, associa a visão de seu pênis a um cavalo, animal do qual tem fobia desde criança. Em ambos os encontros, fracassa a consumação do ato.

Guillaume procura vencer o medo de cavalo, claramente um símbolo fálico, em aulas de equitação, onde um calmo professor lhe ensina a cavalgar e a “confiar no animal”, o que termina por fazer com grande alegria.

Passo seguinte, encontra Amandine, por quem se apaixona e, no jantar só de mulheres onde a conhece, se delicia ao ouvir a anfitriã chamar para a refeição  –  “Meninas e Guillaume, à mesa”. Finalmente é reconhecido como homem, o que sua mãe se negava a fazer.

Entendemos que Guillaume está de tal forma fundido com a mãe, que quase delirantemente, se vê como uma menina, uma mulher como ela. Quando a mãe o designa como homossexual, ele passa a se ver assim e somente após um empenho pessoal pode encontrar sua heterossexualidade.

Guillaume está mergulhado no desejo da mãe e se identifica com a imagem que ela faz dele. Seguindo a designação da mãe, no inicio se vê como mulher e em seguida como homossexual. Somente num estágio ultimo, se vê com os próprios olhos, reconhece o próprio desejo.

Na fala final, Guillaume diz ter finalmente entendido o dilema no qual  vivera até então. Tinha aceitado ser a filha mulher que a mãe nunca tivera porque isso lhe garantia uma  posição de preferido da mãe frente aos outros irmãos. E compreende que a mãe não tolera que ele seja homem por não aceitar que ele ame outra mulher que não ela. A mãe não entende que é por amá-la tanto que ele pode amar outras mulheres.

A relação narcísica da mãe com o filho e as repercussões na determinação do gênero e escolha sexual ficam muito claras. Por algum motivo inconsciente que não é explicitado, a mãe de Guillaume se nega a vê-lo como homem, coloca-o na posição da filha que não teve e posteriormente como homossexual. O pai – por omissão – endossa a visão da mulher, pois não defende a masculinidade do filho, deixando que a mãe o absorva e se imponha como modelo identificatório. Guillaume se submete para não perder a primazia no amor da mãe e por falta de investimento do pai, que não se oferece como modelo de identificação.

A forma como encontra a identidade masculina é metafórica – o perder o medo do cavalo – mas isso só ocorre com a tranquila ajuda do treinador, que, em cena tocante e envolvente, o ensina a não ter medo da própria masculinidade.

No final, Guillaume avisa a mãe que vai casar com Amandine e que escreverá uma peça contando suas peripécias para se encontrar como homem.

O filme é original por inverter o roteiro com a qual estamos mais habituados, no qual o que está reprimido é a homossexualidade e não, como é o caso aqui, a heterossexualidade.  É também uma boa sacada o fato de Guillaume representar a si mesmo e à mãe até o momento em que se discrimina dela e reencontra sua masculinidade, quando a mãe passa a ser interpretada por uma atriz.

Acompanhamos a perplexidade, a procura, a descoberta de Guillaume num tom leve de comédia, que nunca resvala para os conhecidos estereótipos ligados à situação. São cômicas as várias idas a psiquiatras e psicanalistas, a fuga do exército, os desencontros do pai – especialmente ao ser flagrado no momento em que se imaginava como Sissi, a imperatriz da Áustria.

A estrutura narrativa do filme é interessante.  Começa com um ator se preparando para entrar em cena no teatro. É Guillaume representando a peça que no final do filme dirá à mãe que vai escrever. Circulando com habilidade entre os registros realísticos e imaginário, Guillaume Gallienne  elabora através da obra de arte seus traumas, deixando que a sublimação recrie seus objetos destruídos e pense suas feridas narcísicas.

O filme deve ser visto como uma delicada fábula sobre a constituição da identidade sexual, na qual joga papel decisivo o desejo dos pais (especialmente da mãe) e as identificações realizadas pela criança a partir daí.

O filme é também curioso na medida em que ilustra de forma fidedigna uma das explicações psicanalíticas de Freud sobre a homossexualidade, ideias atualmente atacadas por ativistas gays e da Queer Theory.

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