Encharcado de emoções – sobre o filme “As Canções” de Eduardo Coutinho

Encharcado de emoções – sobre o filme “As Canções”, de Eduardo Coutinho (*)

Sérgio Telles

No fundo penumbroso, vê-se uma cortina negra. De lá surge uma pessoa que se encaminha para a cadeira iluminada no primeiro plano, na qual se senta. Uma voz em off faz algumas perguntas e a pessoa fala de sua vida e canta as canções que a marcaram. As histórias se sucedem. Homens e mulheres se emocionam ao lembrar o passado, seus entes queridos, suas loucuras, seus arrebatamentos, seus projetos desfeitos ou realizados, suas conquistas, suas vitórias.

Aí entendemos porque Eduardo Coutinho escolheu para seu documentário As Canções um cenário despojado e tão fixo quanto a câmera. Desta maneira fica ressaltado o que lhe importa – o foco na fala dos convidados, no relato das trajetórias acidentadas de suas vidas. Os depoimentos adquirem uma força suplementar quando as pessoas cantam as músicas que sublinharam os momentos culminantes de suas vivências.

Sabe-se que o documentário é um gênero com linguagem própria, mais restrita do que a dos filmes de ficção. Mesmo assim, é chamativa a forma como em As Canções Coutinho privilegia com exclusividade a narrativa oral, forma ancestral de comunicação humana na qual aquele que fala mantém a plateia subjugada ao fio de sua voz. Para tanto, Coutinho abdica de forma mais radical das amplas possibilidades de encenação audiovisual do cinema, restringindo ao mínimo seus recursos.

Embora esta não seja a ideia central do filme, ao convidar seus entrevistados para cantarem a capela, Coutinho termina por ressaltar a diferença entre a fala e o canto. A primeira, apesar de também despertar afetos, deve seguir predominantemente a racionalidade lógica para transmitir de forma compreensível sua mensagem. O canto, por sua vez, parte de outros pressupostos que mostram o lugar especial da música entre as artes. Saltando os percalços da lógica própria da fala, apela diretamente para os sentimentos do ouvinte.

Nem todos falam com fluência ou cantam de forma afinada. Mas, por menos dotado que seja, aquele que fala termina por se fazer entender. Já o canto é mais exigente e faz com que o menos aquinhoado seja imediatamente rejeitado por aquele que o ouve, que se sente agredido pela ausência da musicalidade. Por isso mesmo, em As Canções, as pessoas parecem ainda mais completamente expostas e vulneráveis em sua claudicante humanidade ao cantarem, mostrando diretamente não só seus afetos como suas falhas e limitações.

O fato de os entrevistados atribuírem tão grande valor afetivo às canções mostra algo comum a todos nós. Há acontecimentos cuja importância ou magnitude transcende nossa capacidade de lhes dar a expressão que merecem. Não só nossas palavras nos parecem insuficientes para representar o que sentimos, como nos consideramos tão desorganizados e atrapalhados com o impacto sofrido que necessitamos da mediação da fala de um terceiro, que nos proporciona um necessário distanciamento para fazermos uma avaliação confiável dos referidos acontecimentos. É nestas circunstâncias que pedimos socorro aos escritores, aos compositores; é quando nos voltamos para a literatura, a poesia, as canções.

Tudo isso faz de As Canções um filme encharcado de emoção, extravasando sentimentos diretamente da tela para o espectador.

***

Tal como o documentário de Coutinho, o Natal é uma festa encharcada de emoção. Das festividades da civilização ocidental cristã, é a que tem maior apelo afetivo. É compreensível, pois, ao lado dos significados religiosos, o Natal nos mostra o momento em que uma família se constitui, o que se dá pelo nascimento do filho de um casal. Por essa via, o Natal aponta diretamente para a realidade familiar, que nos é muito próxima, fazendo-nos evocar nossas famílias – seja a família original onde ocupávamos o lugar de filho, ou a família que constituímos ocupando o lugar de pai. Daí o Natal suscitar sentimentos tão fortes nas pessoas.

Tirando proveito desse derramamento afetivo, o consumo e publicidade se apropriaram do Natal, transformando-o na maior oportunidade de vendas do ano. Embora a maioria se alegre com o simbolismo explícito do nascimento de uma criança, com tudo que isso representa de esperança, continuidade e oposição à morte (ideias reforçadas com as festividades do ano-novo, que também apontam para a renovação e o recomeço), não podemos esquecer que há pessoas que não compartilham deste sentimento. Pelo contrário, sentem-se tristes, ficam deprimidas e lamentam não compartilhar uma alegria que supõem ser universal nesta ocasião.

Como o Natal nos remete à família, é de se esperar que as experiências ali ocorridas sejam singulares, apresentem, portanto, uma grande variedade. Ao contrário da visão apressada que mostra as relações familiares como perfeitas e amorosas, a verdade é que elas podem ser bastante difíceis.

Não é então surpreendente que enquanto muitos curtam e aproveitem sem maiores conflitos a festa do Natal, alguns a experimentem com uma carga mais complexa de sentimentos.

Mais do que nosso conhecimento intelectual, é essa mistura de amores e ódios, fracassos e vitórias, carinhos e violências, alegria e tristeza, agressões e cuidados para com aqueles que nos são próximos o que dá a nossa verdadeira dimensão enquanto seres humanos. Em nossos afetos está armazenado o inestimável fogo da vida.

Não é outra coisa o que afirma Roberto Carlos quando diz – “se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi”, canção extraordinária que um dos entrevistados de Coutinho bem que poderia ter cantado.

Para os que gostam muito, para os que gostam menos e mesmo para os que desgostam, desejo a todos um bom natal e um feliz ano-novo.

(*) Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo”, em 24/12/2011

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