É possível o diálogo entre a hipocondria e a atual prática médica?

Resenha de “Hipocondria – Impasses da Alma, Desafios do Corpo” – de Rubens Marcelo Volich – Coleção Clínica Psicanalítica – Editora Casa do Psicólogo – 2002 – São Paulo.

A tecno-ciência tem possibilitado avanços imensos na medicina, que se refletem nos campos do diagnóstico e da terapêutica. O corpo humano pode ser avaliado de forma cada vez mais precisa, o que possibilita intervenções médicas mais acuradas e eficazes.

Tudo estaria muito bem se no ser humano o corpo respondesse exclusivamente aos ditames da anatomia e da fisiopatologia, categorias que fornecem os dados positivos captados, registrados e tratados com os recursos da tecno-ciência.

Logo constatamos que a coisa não é bem assim.

É quando chegam aqueles pacientes que procuram os médicos com muitas e variadas queixas e, após a completa bateria dos exames mais modernos e minuciosos, não ficam contentes com as tranqüilizadoras afirmações de que eles nada têm de doentes. Não ficam convencidos de que estão gozando de perfeita saúde, tal como lhes asseguram os médicos. Não acreditam no que lhes dizem. Pensam que foram mal atendidos, que poderia ter havido um erro no diagnóstico – afinal, uma possibilidade sempre possível – e prosseguem em sua peregrinação à procura de outros médicos que lhes descubram a origem e o tratamento dos males que sentem atormentá-los.

São os hipocondríacos, os que estão convencidos da presença de uma doença que ataca seus corpos, doença essa não confirmada pelos exames médicos.

Eles, os hipocondríacos, não estão sós. Com eles estão os histéricos, os anoréxicos, os bulímicos, os psicossomáticos, os dismorfofóbicos (preocupados morbidamente com a aparência), os simuladores. Mais grave ainda, estão aqueles que provocam deliberadamente alterações em seus corpos, chegando a auto-mutilação, para induzir intervenções médico-cirurgicas. São os portadores da síndrome de Münchausen.

Constituem um batalhão de seres humanos que expressam seus sofrimentos psíquicos através de queixas deslocadas, sentidas no corpo.

Foi através do estudo destes pacientes que a psicanálise, a começar com Freud, entendeu que ao corpo real, regido pelas leis da anatomia e da fisiopatologia, corpo esse largamente desvendado pela moderna tecno-ciência médica, corresponde o corpo erógeno, totalmente permeado pelo imaginário, palco de inumeráveis fantasias inconscientes.

Esses pacientes estão em maus lençóis. Em primeiro lugar, porque eles mesmos ignoram que o corpo, onde zelosamente depositam suas queixas, é apenas um esconderijo de dores outras, advindas de seus relacionamentos com seus seres queridos, de suas perdas, de suas paixões, de sua história passada e atual. Em segundo, porque não há muito espaço na clínica médica moderna para tal tipo de paciente. Eles não são escutados.

Apesar de terem ouvido à exaustão nas escolas médicas que “o homem é um ser bio-psico-social” – afirmação que tenta enfatizar a necessidade de entender o paciente em sua totalidade, em sua tripla inserção nas realidades biológica, psiquica e social – na prática, os médicos terminam por fazer uma cisão muito marcada entre o “biológico” (a realidade do corpo físico) e o “psico-social”, privilegiando de longe o primeiro. O “psico-social”, na maioria das vezes, fica relegado para as longínquas e desprestigiadas províncias da psicologia médica, da psiquiatria e da saúde pública.

A ênfase nos achados da tecno-ciência médica, o privilegiar os dados por ela tornados disponíveis, parece reforçar essa situação. A preconizada relação médico-paciente, lugar onde a realidade “bio-psico-social” do paciente pode ser aquilatada tem sua importância diminuída. Além disso, o próprio crescimento do conhecimento médico levou à sua fragmentação, estabelecendo “especialidades’, fazendo desaparecer a figura do clínico geral e médico de família, que conhecia de perto seus pacientes e tinha uma visão médica mais integrada.

Como se não fosse o bastante, temos visto como a prática médica, enquanto exercício

de profissionais liberais, tirando as excessões de praxe, é uma atividade em extinção. A presença maciça das companhias de seguro-saúde (“managed-care”) domina o mercado e impõe critérios e modelos de atendimento para os pacientes. Isso tem aspectos positivos, como o estabelecimento da medicina baseada em evidências (“evidence-based medicine”), a organização de protocolos que uniformizam e racionalizam atendimentos de quadros mais comuns. Por outro lado, as companhias de seguro-saúde estão muito atentas à sua própria saúde econômica, ou seja, à geração de lucros, o que as deixa muito zelosas quanto aos custos operacionais de suas atividades.

Além das normas das empresas de seguro-saúde (“managed-care”), que forçosamente influenciam a postura do médico frente ao paciente, não devemos esquecer as grandes corporações da indústria farmacêutica que, através de maciça propaganda para os próprios médicos e para os leigos – a publicidade farmaceutica gira 2.7 bilhões de dólares por ano só nos Estados Unidos – exercem grande pressão na escolha da terapeutica a ser utilizada, sobrevalorizando a farmacoterapia em detrimento de qualquer abordagem mais pessoal, psicoterapeutica.

Um dos resultados desta situação é que o paciente não tem com quem falar de seus sofrimentos, perdeu o médico como o interlocutor privilegiado na escuta possível de suas dores físicas e psíquicas. Isso termina por provocar uma reação curiosa e maléfica: o avanço da medicina científica – com seu distanciamento afetivo e emocional do paciente – termina por favorecer o recrudescimento da medicina dita “alternativa”, com suas práticas obsoletas e muitas vezes mágicas, mas que oferece aquilo que é negado ao paciente pela medicina moderna – a escuta de sua dor. Ela atende à necessidade que o paciente tem de ser ouvido.

Os hipocondríacos e seus companheiros sofredores de doenças “imaginárias”, assim como os portadores de doenças “reais”, pois toda doença física não deixa de Ter uma dimensão hipocondríaca, na medida em que se insere no imaginário que o paciente tem em relação a seu próprio corpo – mostram como a medicina por querer-se “científica” incorre no mesmo impasse da ciência – que, para se estabelecer e ser reconhecida como tal, tem de imediatamente suprimir de si tudo aquilo que é mais especificamente humano, cercando-se de uma ilusão de objetividade e neutralidade, onde não há lugar para a manifestação da subjetividade.

Por estranho que possa parecer, esse equívoco cientificista invade também a própria psiquiatria, hoje regida pelos cânones da DSM-IV – sigla pela qual é conhecido o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, organizado pela Associação Psiquiátrica Americana. Com a justificativa legítima de sistematizar ordenada e claramente as queixas dos pacientes psiquiátricos, os critérios da DSM-IV terminam por privá-los de suas histórias pessoais, das marcas que suas experiências deixaram em seus psiquismos, suas inserções no mundo simbólico que rege a cultura. O psiquiatra-modelo-DSM-IV não quer saber da história do paciente, não tem interesse em sua subjetividade ou na forma em que se estabelece seu contato emocional e afetivo com o paciente . Este psiquiatra tem listas de sintomas que consulta para saber qual medicação é mais eficaz na manipulação dos neuro-transmissores, supostos causadores da sintomatologia apresentada pelo paciente. Todo o acervo de conhecimento trazido pela psicanálise é por ele desprezado.

As idéias acima são desdobramentos do capítulo mais político-social (cap. 4) do denso livro de Rubem Marcelo Volich, “Hipocondria – Impasses da Alma, Desafios do Corpo” (Casa do Psicólogo – 2002).

Ali, além dos assuntos já ventilados, Volich nos mostra os percalços do conceito de hipocondria na história da medicina, rastreando-o desde a Antiguidade, passando pela Idade Média e Renascimento, até chegar aos tempos modernos e ao advento da psicanálise, centro do maior interesse do autor e aspecto mais substancioso do livro.

Volich descreve as imaginosas teorias antigas sobre a hipocondria, que a faziam decorrer de humores localizados no hipocôndrio (região subdiafragmática) e a confundiam com a histeria. Com a teorização freudiana, fica ela classificada como uma “neurose narcísica”, fruto da retração da libido objetal, o que a aproxima da paranóia.

De fato, é bem conhecida a afirmação freudiana de que se o paranóico sente-se perseguido por inimigos localizados no mundo externo, o hipocondríaco está perseguido por seus órgãos.

Volich faz um cuidadoso levantamento do conceito na obra de Freud e em autores pós-freudianos como Ferenczi, Schilder, Melanie Klein, Rosenfelt e Fedida, entre outros.

Diz ele: “Muitas vezes, diante do sofrimento e da perda, entre o vazio e a palavra, o corpo se vê convocado. Diante do outro, do médico, do terapeuta, nos pequenos e grandes sinais do corpo, na exuberância e timidez de suas formas, no silêncio e na eloqüência de suas expressões, escamoteiam-se as marcas da existência humana. Inscrevem-se ali os prazeres, os encontros felizes e gratificantes, mas também as dores, as perdas, as separações mais difíceis de serem compartilhadas. Entre o real e o imaginário, inclina-se muitas vezes o corpo à exigência de conter o sofrimento indizível, de suportar a dor impossível de ser representada. A hipocondria é apenas um dos recursos do humano para lidar com as dores do drama de sua existência”.

Volich, que é psicólogo e psicanalista, residiu na França de 1985 a 1994, onde trabalhou no Serviço de Oncologia do Hospital Saint-Louis em Paris e obteve o título de doutor em 1992 pela Universidade de Paris VII – Denis Diderot.

O livro de Volich é o 19o. da coleção “Clínica Psicanalítica” publicada pela Casa do Psicólogo. Esta editora, juntamente com a Editora Escuta, tem criado um valioso espaço onde a produção de autores psicanalíticos brasileiros é acolhida e divulgada.

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