Dois filmes – “A separação” e “J. Edgar”

Dois filmes

Sérgio Telles

Fui ver J. Edgar, o filme de Clint Eastwood sobre o poderoso chefão do FBI, munido com a imagem mais difundida de Hoover, ou seja, o homem que chantageou a América durante 48 anos, ameaçando a todos com seus arquivos secretos. Imaginava que personagem tão desprovido de valores seria merecidamente exposto e denegrido no filme.

Já A Separação, do cineasta iraniano Asghar Farhadi, me fez pensar que seria mais um daqueles chatíssimos filmes “de arte” de país de Terceiro Mundo, nos quais a limitação de recursos se apresenta como inovação formal e a cuja apresentação o politicamente correto nos obriga a adotar uma postura condescendente e protetora.

Constatei estar completamente equivocado ao assisti-los, ficando evidente para mim que havia entrado nos filmes carregado de ideias preconcebidas, esperando que elas ali se confirmassem, o que, para minha surpresa e alegria, não aconteceu. O episódio deixou claro, mais uma vez, o peso das crenças e ideias pré-formadas com as quais nos revestimos para obter um mínimo de segurança ao pisar no terreno movediço da realidade. São referenciais que nos orientam, permitindo manter a rota certa em meio aos confusos labirintos pelos quais transitamos no correr da vida. Se, por um lado, nos protegem, por outro – ao se cristalizarem como preconceitos – nos limitam e cerceiam, engessando e estreitando nossa visão do mundo.

É aí onde entra a decisiva importância da arte, que oferece um enfoque diferente do esperado, do habitual, do clichê, ampliando e enriquecendo nosso ângulo de visão.

Distante do estereótipo, o retrato que Eastwood pinta de Hoover é complexo, nele convivendo o bem e o mal. Vemos a chantagem constante feita contra presidentes e desafetos, a manipulação da mídia em seu próprio proveito, a criação da imagem de super-homem que resolveu o caso do sequestro do filho de Lindbergh, o exercício abusivo do poder. Mas vemos também seus esforços para desenvolver a racionalização dos métodos de arquivação, iniciados com sucesso na Biblioteca do Congresso e levados para o Bureau; sua atitude pioneira na implantação dos métodos de investigação científica até então inexistentes; a compreensão da importância do registro das impressões digitais para a identificação em massa, etc. Eastwood devolve a Hoover a ambiguidade, detém-se em seus delírios messiânicos de ser o anjo vingador que salvaria a América dos perigos externos (comunismo) e internos (gangsterismo, políticos corruptos), sem perceber que ele mesmo era peça importante do sistema que pensava combater. Dominado por conflitos e contradições, mantinha uma hipócrita fachada com a qual escondia de todos seu homossexualismo e o hábito de cross dressing. A propósito, Eastwood com poucas imagens ilustra de forma correta a psicodinâmica dessa condição – a forte fixação na mãe, que impediu Hoover de ter uma vida amorosa ou sexual mais satisfatória e que o levou a fazer uma identificação com ela após sua morte, usando seus colares e vestidos.

Também o filme A Separação foge das ideias preconcebidas em torno do Islã. As interpretações apressadas sempre o mostram como o antípoda do Ocidente, um mundo estranho ao nosso, com o qual nada temos em comum.

Não se pode negar que a não separação entre Estado e religião faz com que o Islã viva uma situação perniciosa, geradora de grave atraso social e distanciamento das práticas políticas e culturais do mundo ocidental. É, sem dúvida, uma incontornável diferença, cujo manejo cria grandes dificuldades, pois ela indica a alteridade do Outro e como tal deve ser aceita e respeitada, sem que se pretenda impor a este Outro valores que não lhe são próprios.

Estamos tão atentos a essas diferenças que deixamos de lado tudo aquilo que nos aproxima do Islã, e é exatamente disso que trata este notável filme. Uma esposa decide pedir o divórcio do marido, pois este não concorda com seu plano de emigrar para o exterior em busca de um futuro melhor, levando a filha do casal. É uma velada menção ao clima teocrático e às consequências sociais por ele imposto, a expressão do desejo de usufruir um mundo menos fechado e intolerante. O marido alega que não quer partir, além de ter de cuidar do pai, que sofre do Mal de Alzheimer. A empregada contratada para cuidar da casa e do pai doente faz uma acusação ao patrão, desencadeando uma complexa rede de motivações que se afasta por inteiro do que é alegado explicitamente. A partir daí, uma sucessão de fatos mostra como a humanidade transcende mesmo os hábitos culturais e religiosos mais arraigados. A bem tramada narrativa vai ligando motivos secretos não confessados e conflitos de interesse, nos quais se evidencia a generalizada impossibilidade de falar a verdade que reina nas relações pessoais de todas as faixas sociais. Como suplantar o fosso estrutural entre a lei e a justiça, na medida em a primeira é necessariamente a regra a ser aplicada de forma indiscriminada a todos, enquanto a justiça não pode ser dada a não ser levando em conta aspectos sempre muito particulares, que se prendem a detalhes únicos e singulares? Se fôssemos compreender a fundo as motivações conscientes e inconscientes de todo e qualquer ato humano, como ficariam as sanções sociais, a punição? Esse impasse seria um problema típico do Islã? Claro que não. É algo próprio da condição humana.

J.Edgar e A Separação são filmes que ressaltam a diferença entre o preconceito, que caricatura e simplifica, e a arte, que amplia e aprofunda a realidade.

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A entrega do Oscar, vista por 39,3 milhões de pessoas no último domingo, é um acontecimento midiático cuja grandeza o coloca além da crítica, pois ele consagra aquilo que estabelece os parâmetros a serem seguidos no mundo do espetáculo durante o ano. Seria uma prova do império cultural norte-americano ou uma marca do mundo globalizado, no qual se evidencia o triunfo do cinema – imbatível combinação de tecnologia industrial e criação artística – como inconteste arte/entretenimento das massas de nosso tempo?

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Recebi vários e-mails sobre minha coluna anterior, na qual abordei a questão do direito de morrer quando a vida se reduz a uma indigna e dolorosa duração biológica. É uma questão complexa e nuançada que suscita progressivamente maior interesse por parte da sociedade, fazendo-a demandar a quem de direito as mudanças na legislação compatíveis com uma visão mais humanística e contemporânea da morte.

Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 03/03/2012

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