Dezembro, o mês mais cruel

Dezembro, o mês mais cruel (*)

Sérgio Telles

Haveria um mês do ano especialmente cruel?
T.S. Eliot, um dos maiores poetas de língua inglesa do século XX, responderia prontamente – sim, abril é o mais cruel dos meses.
No hemisfério norte, abril marca o inicio da primavera, recebida com grande alegria por trazer com ela o renascimento da natureza, a volta do que desaparecera no inverno. Mas, pensa Eliot, a primavera faz uma promessa enganosa, pois nem tudo retorna, muito se foi para sempre. Por esse motivo, prefere o amortecimento do inverno a seu estardalhaço que intensifica a dor por tudo que foi perdido definitivamente.
Na contramão do sentimento compartilhado por todos, a primavera provocava melancolia em Eliot. O mesmo ocorre com o natal para algumas pessoas. Para elas, com certeza dezembro é o mês mais cruel do ano.
Das grandes festividades, o natal é aquela na qual a família ocupa o lugar mais proeminente. Afinal nele se comemora a chegada do filho do casal Maria e José. O nascimento de um bebê consolida a família como tal. É fato de grande importância e pode trazer muita satisfação para os pais, caso tenham desejado a vinda do rebento, o que nem sempre ocorre. Para os filhos já existentes, a chegada de mais um irmão pode ser vista como uma ameaça à talvez já minguada quota de amor que julgam receber dos genitores. Mau relacionamento entre os pais; velhas brigas, ressentimentos, rivalidades, ciúmes entre os irmãos – esses são alguns dos motivos pelos quais as famílias, diferente do que é mostrado em risonhos comerciais na mídia, podem ser bem infelizes.
No natal essa infelicidade fica mais evidente, pois os costumes pressionam para que haja uma confraternização familiar impossível para muitos.
Hoje a tristeza e a depressão são os pecados inaceitáveis no trato social. Escondem-se esses sentimentos, que são transformados no oposto, numa alegria compulsiva, exagerada, que faz soarem falsos o sorriso e a gargalhada.
Mas, perguntaria um leitor discordante, será que todos veem dezembro como o mais cruel dos meses? Não haverá quem goste do natal? Não existiria a alegria autêntica, legítima? Será toda ela apenas a negação da depressão e tristeza? O leitor tem razão. Ainda bem que a depressão não reina inconteste no mundo. Há alegria e felicidade genuínas. Há os que gostam e muito do natal. Tem os que curtem suas famílias e aqueles que, mesmo vindo de lares problemáticos, conseguiram elaborar e superar suas dificuldades.
Eles estão bem, não precisam de nossos cuidados e preocupações. Por isso volto minha atenção para os que não apreciam o natal, defendendo sua posição, achando legítimo seu sentimento, entendendo seus motivos, pois sei que o natal pode evocar um passado doloroso, uma infância infeliz e solitária da qual transuda uma insopitável pungência.
Espera um pouco. Estou mesmo escrevendo “transuda uma insopitável pungência?” Não é uma frase excessiva, empolada, fora de lugar? Não deveria seguir o figurino do momento e me ater à secura e concisão? Porque me deixo levar por essa mania de resgatar palavras esquecidas e empoeiradas, espaná-las, poli-las um pouco e colocá-las de novo em circulação? O que acontece é que gosto de explorar os recursos da língua, misturar novidades e velharias, a sintaxe magra e dura com estruturas voluptuosas construídas com palavras que repousam solitárias no dicionário como experientes prostitutas que descansam em seu budoar, a rememorar antigas proezas enquanto esperam novos clientes. E se é assim, porque não fazê-lo?
Dizia da insopitável pungência da infância atualizada pelo apelo ao passado familiar próprio do natal, o que, para alguns, marcaria dezembro como o mais cruel dos meses.
Mas não para todos, como já vimos. A maior parte vê dezembro com a agitação características das festas, dos reencontros, da reafirmação dos votos de amizade, trazendo em seu bojo a perspectiva do ano novo e a abertura para o porvir. O próprio natal – se conseguimos vislumbrá-lo debaixo do lixo consumista que o soterra – aponta para a irrupção do novo, a chegada do (in)esperado messias, a renovação de esperanças.

(*) Publicado no jornal “Valor Economico”, São Paulo, em 08/01/2016, sob o título “Dezembro”

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