Deliberações importantes

Deliberações importantes (*)

Sérgio Telles

O filme Os Descendentes, de Alexander Payne e estrelado por George Clooney, forte candidato ao Oscar em várias categorias, de forma indireta aborda um importante tema de nossa modernidade – o direito de morrer quando as condições de vida se tornam insuportáveis e sem perspectivas.

A mulher do personagem central entra em coma após um acidente e, passado algum tempo, os médicos constatam a irreversibilidade do quadro. Isso significa que a mulher, em estado vegetativo sem possibilidade de voltar ao normal, continuaria viva por tempo imprevisível, aguardando passivamente o fim. Nesse ínterim, sua família estaria enfrentando dois grandes problemas. O primeiro, um infindável desgaste emocional, pois é claro que, dadas as circunstâncias, os entes queridos da mulher prefeririam vê-la morta, desejo difícil de ser articulado abertamente e que, mesmo assim, os encheria de culpa por sua “maldade”. O outro é o financeiro, pois é caro manter uma pessoa nesse estado, as despesas com médicos, remédios, cuidadores e suportes variados facilmente esgotam reservas penosamente acumuladas. (No filme, este não seria um problema, por causa do grande patrimônio do marido).

Mas não é isso o que ocorre em Os Descendentes, pois a mulher havia deixado um living will, documento no qual estabelece que não deseja receber procedimentos médicos que prolonguem inutilmente sua vida. Acatando suas determinações, os médicos e a família tomam as providências necessárias para deixá-la morrer em paz. (A tradução literal de living will seria “testamento em vida”, mas a expressão corresponde mais a “manifestação explícita da própria vontade”).

Esse decisivo elemento do enredo do filme é mostrado de modo tão habilidoso que parece absolutamente natural e óbvio para os espectadores. No entanto, ele mostra uma mudança sociocultural frente à morte, que deixa de ser tratada como um tabu e é abordada de forma realística e humanística. Aquele que assina o living will está concretamente interessado na forma como sua morte vai ocorrer e nos efeitos que terá sobre seus familiares, e não apenas no lugar que vai ocupar no outro mundo.

Pensemos sobre os pressupostos necessários para que alguém assine um living will. Para tanto, a pessoa deve ter uma atitude objetiva quanto à sua frágil condição humana, abandonando as negações onipotentes usadas habitualmente contra o conhecimento de que, em algum momento, ocorrerá sua própria morte, e que esta poderá ser antecedida por estados de inconsciência, nos quais estará impossibilitada de tomar qualquer decisão sobre o que lhe acontece. Levando tudo isso em conta, a pessoa produz o documento, no qual determina os procedimentos a serem seguidos e nomeia procuradores que zelem para que seus desejos sejam respeitados.

Essas deliberações que determinam a própria morte teriam alguma relação com o suicídio? Se entendermos o suicídio como a decorrência da decisão de acabar com a vida, a resposta é sim. Mas há discriminações a serem reconhecidas. Para a psiquiatria, o suicídio não é um problema filosófico, como querem alguns, nem um pecado, como afirma a religião. Ele é quase sempre evidência sintomática de graves perturbações psíquicas. A psicanálise entende que, na maioria das vezes, o suicida é uma espécie de homicida disfarçado, pois ele, ao se matar, acredita estar matando a pessoa odiada com a qual está identificado. Sua psique está dominada pela destrutividade própria da pulsão de morte, daí sua postura agressiva contra si mesmo e os outros.

Em sendo assim, não se pode chamar de “suicida” uma pessoa como a personagem do filme. O que está ali em jogo é o direito de morrer quando a vida não é mais do que a mera sobrevivência biológica artificialmente mantida, cercada de sofrimentos e despida de toda dignidade humana.
Apesar da resistência – alimentada por concepções religiosas e pela necessidade de estabelecer uma pertinente jurisprudência -, há uma crescente aprovação social para com esse encaminhamento do problema.

Calcula-se que nos Estados Unidos, em 2007, cerca de 40% das pessoas possuíam um living will e, em 2009, o próprio presidente Obama declarou ter o seu, encorajando as pessoas a fazerem o mesmo. Naquele país, o grupo Aging with Dignity (Envelhecendo com Dignidade), que conta com o poderoso apoio da American Bar Association (similar à nossa OAB) e de outras importantes instituições, tem divulgado um documento chamado Five Wishes (Cinco Desejos), um living will com peso legal em vários Estados norte-americanos, que foi traduzido em 26 línguas (e em braile) e teve 14 milhões de exemplares distribuídos ao redor do mundo.

Aqui, no Brasil, desde dezembro de 2010, a Justiça Federal liberou a ortotanásia, procedimento médico que consiste na suspensão de tratamentos invasivos que prolonguem a vida de pacientes em estado terminal, sem chances de cura. É um importante avanço, mas deixa de lado casos como o mostrado no filme, em que a paciente não estava num quadro terminal, podendo se arrastar por muito tempo ainda sua desalentada vida vegetativa.

Freud havia pedido a seu médico Max Schur que o ajudasse a morrer quando não mais suportasse os sofrimentos trazidos pelo câncer no palato que o obrigara a fazer mais de 30 intervenções cirúrgicas. Aos 83 anos, num determinado momento, Freud disse para Schur: “Agora é só uma tortura sem sentido”. Com a anuência de sua filha Anna, o médico lhe aplicou a morfina necessária para libertá-lo.
Devemos trabalhar para que, numa versão futura da Declaração dos Direitos do Homem, esteja-nos assegurado o direito de morrer quando a vida se transforma na “tortura sem sentido” referida por Freud.

***
Já havia terminado o artigo quando percebi que ele seria publicado no sábado de carnaval, o que poderia deixá-lo discrepante demais com o espírito festivo do momento, tornando ainda mais indigesto o difícil tema abordado. Mas não é por ser carnaval que todos nós, brasileiros, estamos dançando seminus nas ruas ao som do ritmo quente do samba, como talvez pensem os estrangeiros ao verem as propagandas e imagens veiculadas nesta época. Para muita gente, o carnaval é um feriadão aproveitado para o descanso. Assim, se os verdadeiros foliões possivelmente se afastem deste e dos demais artigos, pois estarão entregues aos prazeres do corpo, aqueles que estejam curtindo um ócio despreocupado e envolvidos com suas leituras talvez vejam o artigo como um contraponto para as tediosas informações sobre as escolas de samba que estarão entulhando o noticiário. Evoé Momo!

(*) Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 18/02/2012

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