“Amor”, de Haneke

“Amor”, de Haneke

Sérgio Telles

Velhice, deterioração do corpo, proximidade da morte são dolorosos aspectos da realidade que preferimos esquecer, assuntos desagradáveis e evitados sempre que possível.  Quando, vencendo a resistência, eles se impõem à nossa atenção, logo são contrarrestados por considerações lenitivas ou substituídas por itens mais tranquilizadores.

O que pensar de um filme como “Amor” de Haneke, centrado exatamente nesses temas? Pois embora o título aponte para a relação amorosa do idoso casal de músicos cuja rotina é destruída pela irrupção de um acidente vascular cerebral, o verdadeiro protagonista do filme é a degradação do corpo e da mente trazida pelo envelhecimento.

É possível gostar de “Amor”? Ou fazê-lo é algo aberrante, um gozar com o sofrimento, um sintoma masoquista?

Essa é uma questão interessante. Para respondê-la devemos, em primeiro lugar, levar em conta que o contato com a realidade é imprescindível e não pode ser rompido sem o risco de graves consequências, senão fatais. Mas, como Freud nos mostrou, não fomos feitos para tolerar a realidade de forma continua e ininterrupta. Dela necessitamos nos afastar periodicamente através do sono e do sonho, para, retemperados, aguentar suas severas exigências. Mesmo durante a vigília, com frequência escapamos de seus grilhões através dos sonhos diurnos, das fantasias e devaneios.

De longa data a humanidade usa artifícios para tornar mais toleráveis as agruras da vida, como as drogas e as variadas crenças e ideologias. A esses recursos tradicionais, nossa época acrescentou a larga produção de entretenimentos empreendida pela indústria cultural, evidenciando nossa insaciável demanda por essa matéria, tão necessária para a vida psíquica quanto a alimentação o é para o corpo.

Sem negar a necessidade e a importância de medidas paliativas eficazes a curto prazo, devemos ter em conta que a arte, ao contrário do entretenimento (que tudo transforma em leve e agradável passatempo), não visa acalmar e tranquilizar e sim expressar a complexidade da experiência humana, cujo leque de opções e escolhas, aberturas e impasses, não pode se eximir do mesmo e inevitável desfecho.

A arte proporciona uma maior compreensão de nossa realidade psíquica, dos movimentos incessantes de nossos afetos, de nossas antinomias e descompassos, do fato de sermos divididos, vivermos em permanente conflito interno, plenos de contradições.  É no compartilhar desse entendimento que a psicanálise e a arte estarão para sempre indissoluvelmente unidas, imbatíveis ao refletir a complexidade da mente, sua lógica própria, sua linguagem cifrada.

O reconhecimento da realidade interna e externa possibilitado pela arte e pela psicanálise não leva a uma acomodada aceitação das mesmas e sim a uma visão crítica que estimula a disposição para transformá-las, visando a concretização possível dos próprios desejos e objetivos. Em última instância, a psicanálise e a arte ajudam, sim, àqueles que delas se aproximam, mas de forma diferente do aporte apaziguador que atenua ou nega a realidade, proporcionado pelo entretenimento e pelas terapias de apoio, o que não significa que estes procedimentos não tenham importância na economia psíquica, como vimos acima.

Levando em conta esses pontos, conclui-se que gostar de um filme como “Amor” está longe de poder ser considerado uma manifestação masoquista e mais se inscreve como apreciação da grande arte. É o mesmo que gostar da novela “A morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói, da qual ele bem que poderia ser considerado um equivalente cinematográfico. Ambas as obras se contrapõem e contrastam com os textos piedosos ou de autoajuda, ilustrando bem as diferenças de abordagens do tema.

O filme de Haneke se coloca no centro de um dos debates mais importantes dos dias de hoje – o direito de morrer quando a existência se prolonga em doenças incuráveis, despojando a vida de toda dignidade. Com amplas implicações éticas, políticas e jurídicas, a cuidadosa avaliação da eutanásia acrescenta novas nuances e significações aos conceitos de homicídio e suicídio. Em tempos futuros, com leis mais realistas e a ajuda humanitária dos médicos, impasses como os vividos pelos personagens do filme teriam outro encaminhamento, bem menos traumático.

Indo além dos elementos formais que o caso suscita, o filme insinua um outro delicado desdobramento que mostra a complexidade do problema – do ponto de vista afetivo, teria o pai o direito de decidir o destino da mulher sem consultar a filha?

Aliás, esta última atitude do pai está condizente com a forma distante e fria com que o casal tratava a filha.  Instalada a doença, o pai tenta impedi-la de compartilhar o sofrimento comum, excluindo-a, como se não admitisse o legítimo envolvimento dela na situação. Vemos aos poucos que o “amor” mencionado no título tem uma conotação restrita e específica, circunscrito que é à relação do casal, não se estendendo à filha. Trata-se de um amor conjugal que não inclui o amor filial, familiar. O amor à prole, à descendência (filha e neto) poderia ser um elo a prender o pai à vida. A escolha feita por ele mostra quão tênue ou mesmo inexistente era este vinculo.

A cena final mostra a filha tomando posse da herança deixada pelos pais. Além dos bens materiais representados pelo apartamento, qual seria o legado recebido? Como a filha entenderia o gesto radical do pai? Um exemplo de respeito à vida, de recusa em continuar existindo em condições indignas e desumanas, o assumir o direito de morrer, a não submissão às convenções sociais? Ou mais uma demonstração de descaso e desamor para com ela e o neto?

Dentro do registro contido do filme, parecem deslocadas as cenas com o pombo. Seria a vida persistindo em invadir uma casa já tomada pela morte? Um enigmático simbolismo “poético”, um tanto constrangedor e piegas, destoante do tom seco e despojado mantido até então.

Os que admiraram o realismo e a falta de concessões com os quais Haneke trata um tema tão difícil, seguramente apreciariam também “Iris”, excelente filme inglês de Richard Eyre, que, tal como “Amor” nos dias de hoje, foi indicado para várias categorias do Oscar, em 2002. “Iris” narra a vida do casal de escritores ingleses Iris Murdoch e John Bayley, seguindo-os da juventude até o declínio final trazido pelo Alzheimer.

(*) Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo”, em 02/02/2013

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