CATÁSTROFE E REPRESENTAÇÃO

Catástrofe e Representação, ensaios e ficções organizado por Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva Editora Escuta – São Paulo – 2000.

Este excelente livro traz um conjunto de dez ensaios, sete dos quais foram apresentados em dois ciclos de palestra promovidos pelo Centro de Estudos da Cultura da PUC/SP, nos anos 1997 e 1998, sob o tema “Catástrofe e Representação”, tendo como referência central uma reflexão sobre o Holocausto, o Shoah.

Essa grande catástrofe, esse acontecimento pode ser representado de forma adequada ou qualquer tentativa de fazê-lo vai necessariamente banalizá-lo, diminuí-lo, domesticando-o, tornando-o mais palatável, compreensível, extirpando-lhe esse fator de radical estranheza que lhe dá caracteristicas tão próprias? Por outro lado, se não é representado e simbolizado, não se estaria contribuindo para seu esquecimento, sua negação, sua idealização ainda que negativa, além de dar mais elementos para as forças do obscurantismo que disso podem prevalescer? Qual a importância dos sobreviventes e seus testemunhos da catástrofe? Como entender seus sentimentos? Como acolher seu depoimento?

Em 1973, essas questões receberam uma formulação radical que mereceu atenção por ter sido proferida por Theodor Adorno. Disse ele: “Depois de Auschwitz, não é mais possível escrever poema”. Para Adorno, a partir da incomensurável do Shoah, qualquer tentativa de representá-lo seria uma traição à verdade, uma injustiça para com suas vítimas, uma banalização insuportável. Mais ainda, se esta monstruosidade é produto do pensamento e da representação, estas categorias estão definitivamente sob suspeita, somente toleráveis doravante na medida em que se voltem contra si mesmas, numa desconstrução sistemática. Essa posição aporética de Adorno é posteriormente amenizada, quando reconhece que a arte pode enfrentar a representação de tais calamidades sem trair sua verdadeira essência.

Partindo da realidade terrível dos campos de extermínio e da (im)possibilidade de representá-los, os articulistas corretamente ampliam o tema, dando-lhe a devida dimensão ao colocá-lo como a questão da representabilidade do “trauma”. O “trauma”, aqui entendido dentro dos parâmetros freudianos, é aquele acontecimento que o ego não consegue metabolizar pelo que implica de demasia, de transbordamento absoluto, ou – ao contrário – pela falta excessiva. Tais circunstâncias rompem o escudo protetor do ego, o paraexcitação, tendo como consequência sérios efeitos sobre o psiquismo, como a produção de sintomas, cuja resolução vai depender da possibilidade de representar (simbolizar) o “trauma”, pois com isso deixaria ele de ser um “corpo estranho” que provoca a compulsão à repetição – infrutífera tentativa do psiquismo em controlá-lo retroativamente. Ao ser simbolizado (representado), o “trauma” tem acesso ao comércio associativo com outras representações, sofrendo o desgaste natural que lhes é próprio.

Com isso, abre-se outra questão: o que pode ser considerado como “trauma”?

Isso enriquece e complexifica o problema, pois vamos ver que o “trauma” deixa de habitar apenas situações extremas e pontuais, por mais terríveis e impensáveis que possam ser – como é o caso dos campos de extermínio realizados pelo projeto político do nazismo – e passa a ser reconhecido em sua forma mais estrutural – como a história, o real, o desejo, a infância.

Se até aqui vemos como os referenciais psicanalíticos são fundamentais para a abordagem deste assunto, devemos lembrar que a questão da representabilidade em geral é um antigo problema filosófico, como – por exemplo, no conceito kantiano de “sublime” – entendido não dentro de seu significado atual de “algo que atingiu o grau muito elevado na escala dos valores morais, intelectuais ou estéticos, quase perfeito, admirável, superior, esplêndido, magnífico, maravilhoso, lindo, etc” como nos ensina o Aurélio, e sim em sua raiz etimológica de “sub-limen” (limite), ilimitado, desmesurado. É verdade que o ilimitado, o incomensurável, o informe, o irrepresentável, aquilo que transcende qualquer possibilidade de representação por ligar-se ao absoluto, refere-se ao campo do divino, a Deus. É por esta via que se estabeleceu no judaísmo a proibição de qualquer representação de Deus, que seja por imagens ou pela escrita. Vê-se que o significado mais corriqueiro e atual de “sublime”, algo que beira a perfeição de Deus, deriva daí.

É curioso ver como há pontos de contato entre essa concepção de Deus como incomensurável e irrepresentável e a noção lacaniana de “real”- como “aquilo que é” e que foge inteiramente a qualquer possibilidade de representação total – pontos de contato estes que apenas salientam a radical diferença postulada pela psicanálise, enquanto campo de conhecimento distante de qualquer formulação místico-religiosa, que faz Lacan também afirmar que “Deus é o inconsciente”.

Se este é o pano de fundo que une esses dez ensaios, cada um o enfoca de modo peculiar.

Shoshana Felman em “Educação e Crise ou as vicissitudes do ensino” relata um inesperado desdobramento em um de seus cursos de pós-graduação em Yale, intitulado “Literatura e Testemunho – Literatura, psicanálise e história”. Para tanto tinha selecionado textos de Camus, Dostoievski, Freud, Mallarmé, Paul Celan e depoimentos autobiográficos/históricos do Arquivo de Vídeos sobre Testemunhas do Holocausto de Yale. Tais textos e vídeos provocaram nos alunos fortes reações consideradas “traumáticas” pela autora, sobre as quais procura.estabelecer algumas hipóteses.

Márcio Seligman-Silva, em “A História como Trauma” estabelece uma brilhante articulação entre o Holocausto e o problemas de sua representabilidade, as noções de trauma em Freud, de sublime em Kant e de real em Lacan, tal como resumimos acima.

Jeanne Marie Gagnebin em “Palavras para Hurbinek”, traz notícias de um simpósio realizado na Sorbonne em 1997, “O Homem, a Língua, os Campos”, organizado pela Associação Interuniversitária de Pesquisa sobre Campos e Genocídios, com o apoio da Unesco e da Universidade de Paris IV e Reims. Os temas ali abordados fornecem elementos para considerações a respeito de outros exterminios menos discutidos, como o Gulag russo. Salienta como a história pode ser uma construção fruto da ideologia e da luta política e como ela pode ser usada como refúgio de um presente angustiante, onde extermínios continuam a ser praticados, como nos Bálcãs e na África. Gagnebin aponta, como vários outros, o sentimento de culpa dos sobreviventes.

Cathy Caruth em “Modalidades do despertar traumático (Freud, Lacan e a ética da memória)” faz uma longa dissertação em torno do famoso sonho “pai, não vês que estou queimando?”, com o qual Freud abre seu livro “A Interpretação dos Sonhos”. Este sonho – tido por um pai no velório de seu pequeno filho – permite abordar o tema do sobrevivente (e sua culpa) assim como abordar a questão de onde está o “trauma” – na realidade externa, no fato insuportável da morte do filho (o sonho então, como diz Freud, protege o sonhador contra o acordar) ou na realidade interna, no desejo inconsciente, na pulsão (o acordar então, como diz Lacan, protegendo o sonhador de manter-se em contato com o desejo, com a pulsão)?

Maria Rita Khel em “O sexo, a morte, a mãe e o mal” articula de forma muito clara o irrepresentável com o trauma freudiano e o real lacaniano. Critica o que considera uma certa fascinação com o irrepresentável bem como sua frequente associação com o feminino. A seu ver há três dimensões do efetivamente irrepresentável: o sexo (o ato sexual no qual fomos concebidos), a morte (onde já não somos) e a mãe (enquanto ventre materno que nos abrigou e expulsou); tais situações nos flagram a todos em absoluta passividade, entregues ao poder absoluto do Outro. Refuta a ligação sempre feita entre o Mal e o irrepresentável, afirmando: “(…) diante de uma pretensão abolutizante, não há diferença nenhuma entre o mal e o bem: ambos se tornam igualmente irrepresentáveis e igualmente terríveis. Ouso dizer que o ato que se pretende absoluto irá sempre, sem exceção, produzir morte. A vida é indissociável a incompletude, da confusão do vir-a-ser constante que a incompletude promove”.

Eliana Robert Moraes em “A memória da fera” mostra como Georges Bataille – com sua postura “terenciana”- procura não se furtar ao fato de que a monstruosidade nazista é um inegável produto da nossa humanidade.

Leda Tenório da Motta em “Celine diante do extremo” mostra Celine como um grande cronista memorialista de seu tempo, colocando-o dentro de uma grande tradição literária francesa. Se Proust teve como objeto de interesse a aristocracia da Rive Droite, Celine se detem com a caótica França colaboracionista, a turma de Vichy, as fugas para o Norte, a degradação pública

Peter Pál Pelbart em “Cinema e Holocausto” mostra as diferenças profundas entre dois grandes filmes, o “Shoah” de Claude Lanzmann e “Hitler, um filme da Alemanha” de Hans Jürgen Syberberg. A isso contrapõe o poderia ser considerado como um projeto cinematográfico de Hitler, a própria guerra como um enlouquecido super-espetáculo.

Arthur Nestrovski em “Vozes de crianças” fala de tres livros cujos autores dão testemunho de suas infâncias ou de outrem. Blake Morrison fala dos meninos assassinos de Liverpool. Leila Berg fala de sua infância de judia na Inglaterra do entre-guerra. O terceiro livro, “Fragmentos” de Binjamin Wilkomirski, veio a se constituir em rumoro caso de fraude, ao qual logo voltaremos.Aqui claramente a infância é o local do trauma, da catástrofe inevitável, da sede das experiências para sempre irrepresentáveis.

Geoffrey H. Hartman em “Holocausto, Testemunho, Arte e Trauma” esgota as antinomias decorrentes da divulgação, representação, vulgarização e banalização do Holocausto (que levam a uma anestesia indiferente, a uma desrealização do mesmo), e a necessidade de divulgá-lo, pensá-lo, elaborá-lo, estudá-lo – até mesmo em suas implicações transgeracionais. A peculiar poesia de Celan, tal como Shoshana Felman também afirmara anteriormente, é tida como a expressão mais bem sucedida do impasse entre o silêncio imposto pela impossibilidade de articular algo excessivo e esmagador em sua ignomínia, e necessidade vital de denunciá-lo, de expressar a magnitude dos sentimentos dele decorrentes.

O livro inclui dois contos de Bernardo Carvalho e Modesto Carone.

Gostaria de concluir com alguns comentários sobre o acima citado “Caso Wilkomirski”. Quando foi lançado, em 1995, “Memórias de uma infância 1939-1948”, de autoria de um tal Benjamin Wilkomirski, relatando – como diz o título – as lembranças de uma criança que sobrevivera a um dos campos de extermínio, o livro causou grande impacto, recebendo imediatamente todas as honrarias e elogios da crítica. Foi comparado a Homero, Cervantes e Shakespeare. Recebeu prêmios do Jewish Quarterly (Londres), do Museu do Holocausto (Washington), da Memória da Shoah (Paris), do National Jewish Book Award (Nova Iorque).

Logo depois, o grande constrangimento. O livro era um trabalho de ficção de um suisso, que se acreditava judeu, apesar de provas contra. Se o autor se revelava como um caso psiquiátrico, com problemas de identidade, várias questões outras se apresentam. Em primeiro lugar, constata-se como a ideologia e a política interferem vigorsamente no julgamento de uma obra de arte – o livro foi aclamado como obra-prima enquanto se pensava ter sido escrito por um sobrevivente dos campos, o que seria capitalizado na questão do Holocausto . Em segundo lugar, a questão central tratada nestes ensaios, a representabilidade do Holocausto, parece receber uma inesperada resposta, pois o “irrepresentável”, o “inominável”, o “sublime” dos campos foi muito bem representado por uma obra de um “goy”, que chegou a comover as mais altas autoridades judáicas e por elas ser reconhecido e aclamado… Em terceiro lugar, recentemente viu-se que os editores tinham elementos para desconfiar da veracidade do manuscrito recebido, mas mesmo assim o publicaram, tendo em vista os lucros…

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