PEIXE DE BICICLETA

Peixe de Bicicleta, SÉRGIO TELLES

Artigos

MALCOLM SILVERMAN

UMAS POUCAS PALAVRAS

Telles sempre se apóia no personagem como metáfora, cujas ações e comportamentos (bons ou maus) servem apenas para complementar sua versão aparentemente irônica do tema da sobrevivência do mais forte.
Ao abordar as classes média e profissional urbanas, liberais e bem de vida, o escritor e psicanalista Sérgio Telles escreve sobre o que conhece melhor. Para ele, o conflito e a desarmonia entre as pessoas reinam supremos num cosmos que é compartilhado com seus leitores. A imagem temática resultante disso proporciona um sentimento algo familiar, cuja presença, paradoxalmente, mais tranqüiliza do que ameaça.

Vistos quer seja de dentro da unidade familiar (em estado de desagregação), quer seja de fora, os relacionamentos sociais — e aí se incluem tanto o casamento heterossexual (e o divórcio) bem como as ligações homossexuais — resultam sempre inadequados e insatisfatórios.

Compreensivelmente, a fuga para o passado é uma panacéia freqüentemente tentada e que logo se revela pouco eficiente. O escapar para o passado é instigado por qualquer catalisador encontrado na transitoriedade das coisas, do que as narrativas estão cheias. Um colchão manchado, utensílios de cozinha, uma coleção de lápis, até mesmo sabonetes de luxo – tudo serve como expressiva metonímia doméstica referente ao tempus fugit e um barômetro revelador da preocupação com a morte que se aproxima, preocupação que se instala mais intensamente a partir da meia idade.

De fato, esta tese preponderante, que se apóia numa memorabilia fluida e menos tangível, proporciona amplas variações sobre os derivativos do lembrar, que ressoam por toda a obra. Tudo leva a uma justaposição cronológica, o que reforça o tom confessional das peças de Telles, em sua maioria escritas numa primeira pessoa intimista.

Variando entre uma página e meia-dúzia, as narrativas menores têm mais o tom de crônicas de um ensaísta. Simultaneamente, os contos mais longos tendem a manter a forma estrutural preferida, quer seja na fusão de vários sub-enredos, quer seja inserindo o passado em alusões atuais aos perenes impasses do comportamento social tradicional.

Tal ampla insatisfação pessoal, entretanto, se manifesta em vívidos detalhes e alguns imprevistos exemplos tragicômicos. Por exemplo, o leitor mergulha nos pensamentos de um casal em guerra consigo mesmo em “Quando Cora cala”, onde o exercício físico e roupas da moda não conseguem disfarçar, pelo menos não por muito tempo, as feridas íntimas decorrentes da poderosa luta entre os sexos. Atrito similar também ocorre em “Uma coleção de lápis” e no revelador “Tique Nervoso”. O primeiro abre o livro com um resignado ex-marido ligando o passado e o presente de maneira menos querelante. Quanto ao outro, trata de um ex-marido de certa forma obcecado, aborrecido com o novo casamento de sua ex-mulher, cujo marido é gozado no titulo. Humorístico e desconcertante ate no próprio titulo, “Peixe de Bicicleta” usa o feminismo militante e quase caricato para expor as dúvidas íntimas da protagonista-narradora a respeito de seu gozo evasivo e pouco conjugal. Além disso, as palavras cruciais em negrito, assim como o inequívoco simbolismo do órgão sexual, enfatizam a intransigência de ambos os lados.

Num outro extremo, estão os anatomicamente evocativos “Barriga a dentro” e “Cicatriz de Bala” — títulos sugestivos, no mínimo, de investigação científica. Enquanto isso, os outros contos rejeitam toda e qualquer suposta serenidade doméstica. Em “Encontro”, um inofensivo casal gay é vítima de um alucinado e violento homófobo, como se seu destino estivesse inexoravelmente determinado por um poder superior. Por outro lado, no conto “No meio do caminho”, um casal lésbico dá uma festa de aniversário em casa, da qual participa uma rica amostragem da fauna humana. Nesta linha, particularmente, é talvez o melhor desta coleção de vinte contos.

O conto intitulado “Um jantar” revela um grande desentendimento entre os personagens. Ali, no meio de um punhado de beautiful people, um par de anões – ícones tradicionais do exagero ultra-romântico em torno da feiúra –- encontra-se a contragosto numa reunião grã-fina “Mus-eu”, muito diferente, mostra o absurdo caso, como infere o título, do egocêntrico empregado de um museu que planeja a destruição “discreta” dos objets d’art daquela instituição, como se, ao realizar isso, estivesse transferindo, para si mesmo, seu talento e imortalidade. Afinal de contas, a arte (eurocêntrica), com toda sua intrínseca beleza, tem sua permanência garantida. Esta neurose explosiva, combinada com o pior dos complexos de inferioridade e com a egomania, ainda acha meios de vergastar a religião organizada, apontando a manipulação por ela feita do medo frente à morte que aflige a humanidade.

Novamente aqui, Telles volta ao tema central de “Peixe de Bicicleta”: a busca individual do lugar que cada um ocupa na ordem do mundo. É uma questão incômoda, como já vimos, especialmente aguda a partir da meia idade – precisamente a metáfora capturada no conto “No meio do caminho” e mantida no final pelo tematicamente pesado “Despedida”.

Telles sempre se apóia no personagem como metáfora, cujas ações e comportamentos (bons ou maus) servem apenas para complementar sua versão aparentemente irônica do tema da sobrevivência do mais forte. De fato, tudo em PEIXE DE BICICLETA gira em torno deste inesgotável problema.

Para concluir, este atraente segundo volume de contos de Sérgio Telles segue as polidas mas nada pedantes pegadas de seu MERGULHADOR DE ACAPULCO (1992). Mais uma vez, clareza e precisão estão a serviço da sondagem psicológica. É um quadro simultaneamente tranqüilizador e inquietante de mini-dramas independentes. Todos têm como tema o modus operandi estressante dos dias de hoje, a que um dos poucos consolos que restam é procurar alívio em nostálgicas lembranças a la recherche du temps perdu.

MARIA RITA KEHL

PSICANALISTA DESENROLA O BARBANTE DA VIDA

Com aguda sensibilidade para os múltiplos sentidos que podem ser extraídos dos detalhes mais insignificantes de uma existência, Telles nos oferece neste novo livro 20 textos curtos, de características variadas.
Maria Rita Kehl
Maria Rita Kehl

Todo neurótico é uma espécie de romancista de sua própria vida. Ainda que não escreva concretamente nenhuma linha em papel ou computador, o neurótico está sempre costurando sua história, explicando sua vida, tentando dar sentido ao sintoma, amarrar o futuro no passado, o começo no fim. Pode ser um mau romancista, geralmente é, mas não pára de escrever mentalmente a narrativa da qual ele é, claro, o personagem principal.

Jacques Lacan, em uma de suas afirmações enigmáticas, destinadas a nos fazer pensar, disse que a passagem por uma análise opera no sujeito uma mudança de estilo semelhante àquela que existe entre o romance e o conto. Não que uma história de vida fique mais interessante depois de um percurso de análise. Mas talvez o modo de narrá-la se torne mais leve, mais elegante. Já não há necessidade de tudo explicar, tudo controlar. O conto permite elipses, suspensões na ordem narrativa, espaços de silêncio.

Além disso, o conto, como diz o romancista argentino Ricardo Piglia, conta sempre duas histórias: uma explícita, destinada a conduzir o interesse do leitor, e outra oculta, embutida na primeira, cujo sentido só se revela no final. Como se o conto, melhor do que o romance (e aproximado à poesia), não temesse o inconsciente, lidando com elementos de incerteza por onde ele (o inconsciente do leitor? Do autor? Do próprio texto?) pudesse se manifestar.

Essas considerações me ocorreram ao ler o segundo livro de contos do psicanalista Sérgio Telles, “Peixe de Bicicleta”, que assim como o primeiro, “O Mergulhador de Acapulco”, remete o leitor ao “tempo da delicadeza” da canção de Chico Buarque.

Telles não é o único psicanalista que escreve literatura. Hélio Pellegrino foi poeta, seu filho Pedro foi poeta também e um escultor surpreendente. A psicanalista Samira Chalub, de São Paulo, era uma boa contista. A carioca Lívia García-Roza foi indicada para o Jabuti deste ano pelo seu quarto livro, a excelente novela “Cine Odeon”.

Como eles, e outros tantos, Telles escreve por necessidade. É preciso fazer alguma outra coisa, tecer outra costura com o rude barbante de tantas vidas que nós, psicanalistas, passamos o tempo a desenrolar, para que não se embarace em nossas mãos. Para que não nos embaracemos nele.

Com aguda sensibilidade para os múltiplos sentidos que podem ser extraídos dos detalhes mais insignificantes de uma existência, Telles nos oferece neste novo livro 20 textos curtos, de características variadas.

Alguns são narrativas no sentido tradicional da palavra, ordenadas com começo, meio e fim, e uma certa tensão dramática conduzindo a atenção do leitor. É o caso de “Uma Coleção de Lápis”, que abre o livro, conto de estrutura clássica em que um fragmento do tempo presente remete à rememoração de um incidente de infância, um ato mesquinho do qual o narrador se envergonha.

O tom levemente nostálgico que abre o conto dá lugar a um desfecho anticlimático, “adulto”: o destino do objeto que evocou as lembranças do passado é o saco de lixo. É o caso de “Um Jantar”, em que um encontro social é narrado segundo as diferentes perspectivas dos participantes, revelando os inevitáveis mal-entendidos e os desencontros que pontuam nossa relação com o outro.

Outros são pequenas crônicas, fragmentos, flashes do tempo perdido como o belo “Mesa” ou o comovente “Um Bilhete de Amor”. São descrições com alto poder de condensação, que não precisam contar uma história para se justificar.

Telles não se preocupa com a unidade no que se refere à voz que conduz a narrativa. O “eu” narrador varia, arbitrariamente, de uma história a outra, o que talvez devesse ser evitado em um conjunto tão econômico de contos.

O que confere uma certa unidade ao conjunto não é a posição do narrador, nem uma marca estilística forte, mas uma certa melancolia que perpassa todos os textos, terminando com “Despedida”, curta descrição de uma vida em estado terminal.

Há um aspecto, entretanto, em que o psicanalista sobrepuja o escritor. São os casos em que Telles não resiste à tentação de explicar as motivações embutidas em seu argumento. Passagens de psicanálise explícita às vezes poderiam ser evitadas, para não impedir o efeito enigmático do “conto (secreto) embutido dentro do conto”, a que se refere Ricardo Piglia. Contos como “Barriga Adentro”, “Retirada” e “Tique Nervoso” ficariam melhores sem os (sutis, é verdade) esclarecimentos oferecidos ao leitor.

É que literatura e psicanálise, nascidas da mesma perplexidade diante do vasto enigma humano, constroem a partir daí destinos bem diferentes. A primeira dá voz ao enigma, a segunda tenta decifrá-lo. A prática clínica diária gera em nós, psicanalistas, o hábito da explicação ainda que não para o analisando, ao menos para nós mesmos. É um hábito que a criação literária precisa desconstruir para se realizar plenamente pois, como lembra Godard em seu “Elogio ao Amor”: na arte, “toda solução profana um problema”. Ao que outra personagem completa, mais adiante: … “e todo problema profana um enigma”.

NILZA AMARAL

PEIXE DE BICICLETA E OUTROS CONTOS

“As narrativas de Sérgio Telles inventariam os conflitos, os desvãos escuros e os desejos secretos de vidas de pessoas comuns, personagens que despem as máscaras sociais e se aventuram no tortuoso sentido de suas existências.”

Com esse título, Sérgio Telles dá à luz seu novo livro de vinte contos. São histórias narradas com realismo, colocando-nos a par das inter-relações pessoais dos que coabitam o universo narrativo. Estas, mais um fio de loucura que perpassa por algumas das personagens, fazem a temática da construção da obra.

Dominando a linguagem, eliminando adjetivos e descrições supérfluas, o autor nos permite comparar as pessoas dos seus contos com as de nossa intimidade. São personagens que buscam parcerias, que perseveram na perseguição de atos solidários – o que não significa, entretanto, que consigam seu objetivo. O que o livro tem de atraente? A sua contemporaneidade. Textos ambientados dentro do contingente urbano onde todos movem-se, falam e pensam, e o fazem dentro de um contexto real, tão real que comprovam mais uma vez que sem a realidade não seria possível construir essa ficção de Sérgio Telles: moderna, enxuta e sem aforismos, elaborada dentro dos moldes da linguagem adequada de um texto feito para ser lido – o objetivo de todo bom escritor. Há narrativas longas e outras curtas, lembrando crônicas, em que se percebe um quê de saudade do passado.

Percorrendo-se as estradas de “Peixe de bicicleta”, desvendamos, aos poucos, que o complexo de relações que envolvem o texto são os impedimentos com os quais nos deparamos todos os dias quando nos relacionamos com alguém.

Talvez por isso o autor tenha recorrido à nostalgia interior dos desencontros – de pensamentos, idéias, de constatação – na quase maioria das histórias. A ficção de Sérgio Telles é verossímil. O realismo não é quantificável. O real é compartilhado com o homem, portanto, depende do ponto de vista de cada um. As expressões do autor, às vezes cruas, poderão suscitar no leitor uma sensação desagradável, mas a vida é como ela é. E as vidas narradas nesse universo são sem disfarce, sem enfeites.

A escolha do título nos faz pensar em um distanciamento do texto, um não comprometimento com as histórias perfiladas nessa parada de personagens tão comuns e ao mesmo tempo tão estranhas. Todavia, durante a leitura, percebe-se que somos todos peixes de bicicleta, dispensáveis, nulos.

No conto que dá titulo ao livro, a personagem reflete sobre sua vida sexual rotineira, despertada pelos itens de uma pesquisa sobre orgasmo. Apesar da reflexão e análise, não consegue destrinchar o grande mistério sobre o outro, e admite que as queixas dos dois na relação, embora nunca admitidas, são as mesmas, evidenciadas pelo capricho que ambos têm em disfarçar a sensação do prazer recíproco, – ¨…após dezesseis anos de casamento, Noel continua me perguntando onde está meu clitóris…¨ … o meu pelo menos, seja tão pequeno, tão diverso de seu próprio pênis, que o deixa tão orgulhoso…

Em “Uma Coleção de Lápis”, a personagem nos faz ver que toda ruptura causa depressão. Desloca-se então para o passado, quando inventaria os objetos que lhe cabem da separação, e martirizando-se com um fato ocorrido na infância, pretende empanar o presente, ou justificar uma incapacidade, e, talvez, uma culpa implícita.

Apesar da lembrança que dura o momento de uma reflexão, volta para a praticidade do momento, e nos deixa a sensação de que sempre procuramos explicações para o que nos incomoda: “Uma escondida penitência? Um secreto pedido de desculpas?”.

E assim o livro segue seu curso. Fazendo de cada situação, um motivo para uma reflexão ou até uma advertência inusitada.

No conto “Museu”, a desarticulação da palavra foi proposital. Tão proposital quanto a desarticulação da personagem. Esta se dedica a uma reflexão filosófica sobre a vida e a arte durante uma viagem a Roma, e nos passa com precisão, conceitos e valores, que se não desconhecidos, talvez adormecidos dentro de nós. Por amor à arte decide trabalhar no museu. A partir daí tem início a transformação de sua personalidade, não suportando mais ¨a imortalidade, sua superioridade sobre estas coisas pequenas e insignificantes às quais minha vida se reduz¨, e incapaz de transpor a fronteira entre a loucura e a sanidade, compara a grandiosidade das obras de arte ao desprezo que sente por si mesmo, julgando-se mesquinho e inferior diante dos grandes artistas. É um conto assustador porque nos acena com a possibilidade potencial que todos temos, de um dia extrapolarmos a realidade. Talvez por isso o funcionário do museu seja anônimo – poderia ser qualquer um de nós.

Em “No Meio do Caminho”, Marta, poeta, reflete sobre a sua maturidade quando Zilma, ex-companheira, agora apenas uma acompanhante, decide fazer-lhe uma festa surpresa de aniversário. A constatação de que os amigos do passado ficaram no tempo, de que nada é sempre igual, e que até eles podem nos trazer momentos de desconforto, talvez pela convivência interrompida, pela mudança de hábitos, leva Marta a fazer uma nova avaliação de sua vida. Descobre que está no ¨famoso mezzo del camin, na tal da selva escura¨, e que nada devolverá seu tempo anterior.

“Barriga Adentro” é quase um ensaio genético, com momentos cômicos e outros de profunda austeridade. Em Encontro, Sérgio Telles aborda a homossexualidade, quando Zé Maria, uma das personagens, acredita receber mensagens de Gal Costa para uma missão especial, e de repente

descobre que esta seria eliminar homossexuais.

Com “Despedida”, a mesma sensação que a personagem do último conto deixa no visitante, fica em nós quando fechamos o livro: que o prazer da leitura permanecesse mais tempo conosco, que não se fosse tão depressa.

O leitor que não hesite em abrir as páginas desse livro e penetrar no universo construído por Sérgio Telles. Seu texto, perceptivo, por vezes irônico, ou trágico, ou doido, inaugura uma cumplicidade, uma interatividade com o leitor, levando-o pelos caminhos do realismo imaginário decodificado pelo prazer dos signos escritos.

PEIXE… (EXCERTO)

MESA

Sérgio Telles

O s pirex ainda americanos, com finas faixas de relevos ornamentais em forma de florinhas ou desenhos geométricos.

A fruteira de alumínio, toda amassada.

Os talheres, comprados um a um – de aço inoxidável – cada um com seu desenho próprio.

Os pequenos copos de prata, diferentes entre si, presentes de nascimento, de remotos aniversários. (Copos banhados a prata, descobriríamos depois, abalando retroativamente o orgulho que nos proporcionavam).

Os porta-guardanapos, com o nome gravado, também de “prata”, também antigos presentes.

As xícaras, cada uma de uma cor, cada uma de um jeito diferente.

Cada um de meus irmãos.

A lata de fatia de pão torrado, azul-marinho com desbotadas estrelinhas douradas, ainda visíveis por entre os arranhões e partes ligeiramente enferrujadas.

A digna farinheira de madeira, lisa e redonda, com sua colher de pau, pequena e funda concavidade.

O lugar do pai. O lugar da mãe.

As garrafas d’água da geladeira, de uísque escocês, bebido na casa do tio rico.

A carne algo nervosa. O arroz com tomate, coentro e colorau. O feijão mulatinho.

O leite, o café, o pão.

A coca-cola das grandes ocasiões.

A lata de goiabada Cica ou Peixe.

Agora – o que fazer de tudo isso, essas coisas soltas e desconexas que venho carregando há tanto tempo e com tanto trabalho, equilibrando-as cuidadosamente para que não caiam e quebrem, fonte de tanto cansaço, tanto sofrimento?

Onde estender a toalha velha e manchada em seu quadriculado vermelho?

Onde pôr a mesa e servir o passado num repasto definitivo? Quando será ele comido e engolido de uma vez por todas, deixando-me livre para continuar a jornada sem bagagem desnecessária?

 

O extraordinário em situações cotidianas – Livros de Sérgio Telles retornam às livrarias.

Por Luciana Araujo Marques, para o Valor, de São Paulo

 

Reside no que se dá entre os seres e as coisas a principal matéria dos livros “Peixe de bicicleta” e “Mistura fina”, de Sérgio Telles, inclusive seus interditos e distâncias. Nesse interstício, o escritor conduz o leitor a uma série de associações que, de modo quase inevitável, colocam os personagens no encontro com os demais para sempre restar diante das próprias indagações.

Embora se leia na epígrafe do primeiro volume as perguntas de Virginia Woolf — “Seria eu capaz de transmitir a verdadeira realidade? Ou será que apenas escrevo ensaios sobre mim mesma?” —, elas também poderiam figurar no segundo, o que sugere um projeto autoral conduzido por questões do “eu” como ponto de partida e de chegada até uma alteridade radical: o si mesmo. E está aí um território familiar para o autor, que também é psicanalista. Ou melhor seria dize “estranho familiar”, segundo o vocabulário freudiano.

O que desloca ao extraordinário irrompe nos escritos de Telles em situações cotidianas, seja como memória involuntária ou mesmo em elocubrações que giram ao redor do próprio umbigo como solução de enigmas que só recolocam outros. “Na barriga a carne parece mergulhar na própria carne, na escuridão das vísceras, num desconhecido último e inquietante”, lê-se em “Barriga adentro”. Inquietante, a propósito, é uma outra tradução do “Unheimliche”, citado acima como “estranho”, e o corpo, como aquele do qual nunca nos apartamos, está nos domínios do encontro com o “real”, não no sentido contido no realismo presente na pergunta de Woolf, mas no lacaniano.

A lista de objetos e entes que, em sua aparente imobilidade, são capazes de transportar para outras épocas subjetividades e traçar itinerários para o olhar é ponto alto tanto da prosa quanto da poesia do autor: utensílios dispostos numa mesa, sabonetes, discos, um colchão, lápis, angélicas, walkman, uma alta palmeira. Tudo da ordem de uma certa atemporalidade e da atenção humana de toda época e lugar, alguém que acredita na noção de “universal” poderia dizer.

Entretanto, impera a ambientação nas camadas médias, urbanas e ilustradas bem brasileiras. E é sobretudo a partir desse estrato que enredos e descrições se desenrolam, mesmo quando estão em cena diferentes gêneros, orientações sexuais, idades e condições econômicas.

Ao adentrar certos textos de Telles, reconheço G.H. caminhando na direção da área de serviço, onde a comunhão com o mole de dentro da barata está mais acessível como interioridade do que a de quem é de outra classe. Não à toa, uma ex-empregada é comparada à pop star no clipe de “Private Dancer” em “Francisca Turner”, por ambas serem negras, domésticas, são alvo do apetite sexual dos filhos de patrões em “Cicatriz de bala” e rico material para um escritor em “Um bilhete de amor”.

Neste último o ex-patrão mantem na gaveta seu achado: “Poucos dias após ter partido – por motivos que não lembro mais — tive que ir ao quarto que ocupava e que era também o de despejo. Procurava uma chave de fenda ou algo assim e, ao abrir uma gaveta, encontrei o bilhete que transcrevo agora, com todo o respeito e fidelidade ‘Luis para Lindaura eu amo vôçê tôdo u amor qui êu êsperava na vida qom vôcê êu conheci pôriso não si afasti de mim mêu amôr”.

Fica a pergunta: a mensagem do enamorado é valiosa pelos sentimentos e a história que guardam ou pelo efeito que provoca sua ortografia em contraste com a do narrador e o que ela revela de  uma exclusão em relação à educação formal que, a propósito, a Carolina Maria de Jesus, em citação identificada, o fez de modo testemunhal em seu “Quarto de despejo”?

Outro conto que exemplifica o esforço do escritor nesse sentido de “dar letra” à voz dos excluídos da letra é “Um jantar”. Nele, as palavras de Cidinha, a empregada, aparecem entrecortadas por parênteses. Porém, há no tom do relato algo de diário. Mas se ela escreve, quem se não alguém que se apropria do que registra colocaria ali esses sinais gráficos? De quem é a autoria?

“Peixe de bicicleta” venceu o Prêmio APCA de 2002 na categoria melhores contos. Já “Mistura fina” foi publicado originalmente em 2005 e traz poemas, além de contos e crônicas. Assim, esse intervalo entre o lançamento das  primeiras edições e as que retornam agora às livrarias instiga a releitura.

Não se trata aqui de fiscalizar a literatura com as lentes do politicamente correto ou do monopólio das falas, mas de se perguntar qual o gozo estético que se atinge ao retratar uma gordinha ressentida, a corporeidade dos anões sujeita ao riso ou uma feminista lésbica caricata, para ficar nesses outros exemplos. Afinal, o que tem ou não tem cabimento quando estamos no campo da arte e do inconsciente como matéria? O que trazemos à tona de nós mesmos quando fazemos essa pergunta?

 

Luciana Araujo Mar Teoria Literária e Lite (USP) e doutoranda e Literária (Unicamp)

 

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